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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Observação: Cuidado, faça silêncio...se quiser comente ao final, abaixo.
O paciente.
Grato.

O coma

Lembrava-se de alguns piados de aves junto à janela, de luzes de um monitor ligado a si, de uns tubos que o atrapalhavam. Alguns rostos que se achegavam perto do seu e num instante sumiam. Via o teto novamente, não podia mover-se. Alguém o virava e jogava água no corpo quase inerte, ás vezes, sentia até carinho e algum balbucio espremido, choroso; mas o choro solitário ia-se pelo corredor até sumir em alguns passos de uma enfermeira na contramão. A inconsciência vinha outra vez, num apagamento de bêbado, por muitas primaveras floridas. Nos breves momentos de quase consciência compreendia que o mundo continuava a existir sem ele ou apesar dele e os momentos breves eram eternos no limiar da consciência tão mais consciente. Deliciava-se até com aquele aroma da sopa de hospital, que não comia.
Sem pulso e sem relógio, os seus momentos eram contados pelos pequenos ponteiros de um demiurgo anônimo, que lhe ministrava um ritmo interior, quase imperceptível aos mortais. Talvez ele mesmo. Dos seus olhos eram as cores das primaveras de sempre, dentro de si. Da janela, se estivesse desperto, veria o jardim molhado, após a chuva noturna e o céu bem azul e límpido, enquanto os aparelhos com seus impulsos elétricos demarcam a vigília dos humanos. Um sol enorme, medonho de belo, levantava-se no horizonte, soprando as brisas com seu calor. Era o dia.
Por fim se recuperou o paciente do quarto 1984. Vestido e barbeado, sentou-se para o acerto de contas e para agradecer pelo longo atendimento de primeira classe. Era rico. Ia sacar o talão de cheques. Cheques? A memória o traía. Depois de vinte anos não existiam mais cheques, dinheiro, títulos em papéis. Era tudo por impressão digital. Colocava o indicador num orifício de leitura e pronto, iam-se os créditos de um homem. Queria agradecer as enfermeiras então. Enfermeiras?! Não havia mais. Aquelas que pensara ver, em transe de consciência, eram imagens holográficas, para adaptar o paciente ao hospital. Isso o acalmaria, faz parte da recuperação psicológica, informou o gerente.
Olhou em volta, através da janela, e perguntou do jardim, do seu jardim. Jardim? Era imagem holográfica também, disse o gerente, o metro quadrado ali era caríssimo e esse custo foi revertido em equipamentos e leitos. O paciente concluíra que era tudo automatizado mesmo. “...e salvou a sua vida.”, arrematou o gerente. Vida! A esposa onde estava? Ouvira a voz chorosa dela! “Ah, era uma simulação de voz do computador. Fazia parte da evolução psicológica na U.T.I., na escala de coma 5. Ela está casada com o outro. Não ia te esperar, não é mesmo!”, disse ainda o gerente pragmático.
Afundou no sofá e clamou: meu Deus! “A capela fica do outro lado, é holográfica e com aquecimento, quase se pode tocar as imagens nos pedestais”, disse o gerente, frio; ao que o ex-paciente retrucou, “eu quero morrer”. O representante da empresa replicou que morte é mais cara, o cemitério holográfico demanda energia além do suportável a empresa.
Uma luz piscou no monitor do gerente, que solicitou o indicador do paciente no leitor óptico. Sim, ainda havia crédito! Um dispositivo conectado a poltrona-cama injetou-lhe uma droga e voltou ao coma profundo, no quarto virtual onde estivera sempre, com o diagnóstico justificativo: Readaptação ao sistema. Dias mais tarde, veio a falecer de morte natural. Só se vê fora, de alguma forma, o que já está dentro. Venceu o sistema.
Publicado na Tribuna Piracicabana em 30/03/09

sexta-feira, 27 de março de 2009

Uma homenagem ao meu avô materno. Carlos.
Jardinagem

O velho Carlos ali plantava, enxertava, ajeitava os canteiros, e convivia com todos os seres em miniatura do jardim. Estava encurvado pela idade o homem rude e cheirando a suor, a perfume de plantas e à terra. Conhecia os beija-flores quase que pelo nome e pelo vôo e os via por segundos, batendo suas asas invisíveis, inesquecíveis. Os pássaros em confiança voavam rasantes ao velho de cenho branco que se entretinha em meio a tanto verde e cantos de algazarra daquele passaredo. Afoitos surgiam no ar com danças mirabolantes, outros paravam nos galhos das árvores, cantavam nas moitas e até ciscavam no jardim. Seus pensamentos eram limpos, sua cruz era leve e a natureza amiga. Ao chegar a casa à noite, entrava pelo quintal, tirava os sapatos de terra e antes de entrar na civilização, sentava-se, parava a pensar e agradecer ante o sol que se punha. Lá na cozinha, Irene chamava-o, que subisse a escada e saísse de sua soleira amiga, o jantar estava pronto, que viesse comer. Alguns netos entretinham o olhar na cena, vinha com uma rosa e sem jeito oferecia a Irene, tímido. Velho bobo não precisava se preocupar, dizia, mas todos os dias seu vaso de louça estava repleto dos mais variados matizes e perfumes. O sono de Carlos era um canto uníssono com Deus e com a liberdade.
Portava também um velho livro de folhas amareladas pelo tempo, de orações ao Senhor dos Jardins. Orava em pensamento, enquanto trabalhava, pelos jardins e jardineiros do mundo, por todos os jardins e casas, caminhava sobre as dez pedras brancas que ele mesmo colocara e que faziam o responso aos seus pés, em meio à grama. E que todos pudessem ter seu jardim! Amém. Sabia que não iria além do jardim, queria ser uma daquelas árvores, feias e rudes, a gozar da companhia das flores, cascas, poeira, sementes, que a natureza produz em sua vital dinâmica, arrasadora, inexorável e bela. Ao passar pelo jardim é possível ouvir-lhe os passos pelo farfalhar da grama num ruído verde que rompe o tempo, num zap-zap bem manso. Em meio ao jardim há água aos borbotões, o sábio jardineiro plantou uma vegetação de raízes profundas e ávidas de água, enriquecendo o seu solo, túmidas. As rosas perfumadas e lindas, noutro dia são folhas que ele varre amiúde junto aos pés das árvores. Sabia que seu jardim era efêmero como ele e sua glória. Aprendeu a ser humilde e feliz esperando o seu súbito final, a morte.
Foi capinado da terra e caiu como uma árvore, ainda com os ramos estendidos. Seu jardim acolheu o seu corpo, agonizante. Passou de um jardim a outro, o Senhor dos jardins acolheu o seu servo. Fizeram-se presentes todas as rosas, borboletas e uma grande revoada de pássaros de todas as espécies e cores, em seu funeral. No caixão de cedro, como que dormia, espraiava um sorriso em sua face, ainda rosada. Não quis honra, nenhuma pompa, apenas a mortalha, não quis nada, nada levou, foi inteiro para o céu, para o jardim que a muito estava preparado, antes da fundação do Universo. Morreu para este mundo, sem maculá-lo.
E lá, no jardim inominável debaixo do céu, das raízes enlameadas e túrgidas, ainda transparece a vida dadivosa das plantas. Nos fundos de uma casa velha e ruinosa, a qual descascam-se as paredes e os cômodos. Sim, é a umidade do jardim dizem os engenheiros. É preciso derrubar o jardim, cortar a cabeça do Capitão e Dálias ao fogo, caçar os Antúrios, assombrar os Girassóis, corrigir essa tal Maria-sem-vergonha, nem que sejam as Onze-Horas, que se arranquem as Avencas e acabem com essa encrenca, tire-se o Chapéu-de-Couro, regurgite-se o Boldo e que se feche a Boca-de-Leão, nem que seja Flor de São José, nem que a Dona Margarida abra essa ferida, nem que se jogue a Hortênsia, nem que o Cravo apazigúe com a Rosa, nem que renasça os Gerânios, que se derrube o arvoredo e se espante o passaredo, chega de Palmas.
Assim, indefeso, o jardim foi pisado, arrancado e calcado com cimento. Impiedosamente as flores foram jogadas dentro de um saco para o caminhão barulhento do lixo. Puseram um piso belo, importado com desenhos de plantas, muito bonito e limpo, sem necessidade de nenhum jardineiro.
O povo que vive do lixão retirou as plantas do meio dos cacos de vidros, latas, pilhas usadas, restos de comidas e outros detritos “desumanos” – de coleta não seletiva - e plantaram numa área invadida por pássaros, beija-flores, borboletas, gafanhotos, grilos e todos os rejeitados pelo centro urbano. Um novo jardim? Então encontraram também o livro de folhas amareladas, onde se lê nas letras rudes e piedosas de um recém analfabeto: Eis que o Senhor fará novas todas as coisas. Carlos.

segunda-feira, 23 de março de 2009



O feitiço de Áquila

Áquila era um jovem de uma vila do interior do Brasil, filho de imigrantes italianos. Muito supersticioso, não fazia determinadas coisas (ou coisas determinadas): passar sob escada, sair de casa em sexta-feira treze, não ir ao trabalho se um gato preto lhe passasse no caminho de manhã, tomar banho após o almoço, comer manga após beber leite. Outras coisas, Áquila fazia por devoção mesmo, como ir a Aparecida a pé, não comer carne em sexta-feira santa, persignar-se ao passar em frente a cemitérios, templos e santa cruzes. Decalcara em seu carro tanta santaria e frases de proteção – S.Jorge matando o dragão sobre um cavalo branco, medalhinhas mil e outros santos de seu panteon - que quase foi multado devido ao ruído estético e a falta de visão daquele templo volante com farol dianteiro quebrado que parou quase sem combustível ante uma policial feminina que se assustou com aquele S.Jorge cavalgando no escuro com um dragão no volante. Era noite. Ora para onde ia o Áquila? Estava triste e desorientado.
Quando jovem foi ter com uma cartomante. Estava apaixonado, logo de primeira vista. Foi assim, viu a moça de perfil, bela, de nariz aquilino, olhos verdes com gradações em azul, pele em rubor de esquivar olhares. Estava lá a mulher com quem se casaria, teria filhos, etc. Tudo isso em meio minuto. Mas ficou sabendo que era noiva de Julião, um rapaz metido a besta que não a merecia. A cartomante olhou o jovem Áquila com os olhares de quem lê as cartas na cara do cliente e viu nas cartas, um jovem suado, sem aliança nos dedos, cheio de energia contida que se soltava num tique nervoso, jogou as cartas na mesa de toalha vermelha e macia que caíram sem ruído algum nos ouvidos do consulente, visto que o seu cliente não sabia diferenciar um coringa de um valete. Virava as suas cartas, sinuosa, com seus dedos como quem mexe na vida alheia, e dizia coisas sobre ele deitando seus olhos mal pintados sobre as cartas e os movimentos do cliente terminando com hum de indagação ou de não te falei. A leitura das cartas ia tão bem que Áquila nem percebeu baterem na porta, só percebeu quando a cartomante – que sabia tudo pelas cartas – perguntou quem era. Entrou uma velha maltrapilha, olhou para ele e lhe jogou um feitiço dizendo que se casaria, mas sua esposa e ele seriam como a águia e o lobo. Só se encontrariam à tardezinha, na mudança do dia para noite, porque à noite ele se tornaria lobo e de dia ela se tornaria águia. Viveriam juntos, mas separados pelo tempo e pela natureza animal.
Durante o dia Áquila tinha uma vida e uma alma feliz de uma pessoa normal. Interagia com pessoas e entidades públicas. Tinha uma função social, nome, Rg e CPF. À noite tornava-se um lobo solitário à margem de interjeições impronunciáveis e indescritíveis numa crônica como esta. Perambula pelas ruelas escuras de sua vila e de sua vida roído de ciúmes e idéias às avessas, que a solidão e o desamor criam e voltava de madrugada, quando o sol ia nascer, no limiar entre a noite e o dia, e encontrava-se com uma jovem de uniforme da policia e sorriso largo com quem se casou. Casou-se mesmo com a mulher de seus sonhos depois que ela deixou Julião, mas ele ainda alimenta ciúmes do antecessor. Ele deveria ser o primeiro! Assim Áquila foi definhando e não voava mais como uma águia, mas dava pulos na cerca como uma galinha e não passava do outro lado. Pensava mesmo que era uma galinha, porque as águias pulam de altos rochedos, estendem suas asas e planam nos céus. Áquila fez um galinheiro mágico para sua vida e se pôs sobre um poleiro tremendo de frio e de inveja dos abutres planadores, até que naquela fatídica noite em que foi detido pela própria esposa. Que vergonha! Ela lhe autuou, mandou rebocar o carro para um ferro-velho, levou-o para casa de viatura, pôs na cama, o cobriu com um beijo e pagou a multa de Áquila, que sonhou com ela até o amanhecer e pelo resto da vida celebrando o encontro de cada dia.

sábado, 21 de março de 2009





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Grato.

Sons

Perto da casa de meu avô passava o trem. Certa vez dois homens foram atropelados ao atravessar a linha, a noite. Meus tios foram ver o acontecido. Nós crianças fomos privados da visão horrenda. Dava, contudo, para se ver da casa, um monstro comprido, parado com um holofote aceso e um aglomerado de gente em volta. Quando voltaram diziam que os mortos eram assim, trabalhavam não sei onde e quiseram cortar volta, porque iam fazer não sei o que. Dois desconhecidos que comecei a ver na rua, no rosto de outras pessoas, todos começaram a ter as caras dos mortos. Às vezes, estávamos jantando e ouvíamos o apito, dava para se ver aquele monstro vindo, soltando fumaça e se ficássemos quietos ele passava. Os apitos eram cada vez mais próximos, mas estava passando já, ia-se. Os trilhos eram um tabu, perigosos.
Outro som que ouvíamos era o do sino do cemitério, cada vez que chegava um corpo para enterro. O coveiro ficava postado embaixo dele e puxava a corda do badalo, que parecia um martelinho chato o seu som. Parecia que tocava sempre a tarde, quando o sol ia se pôr, o que dava mais tristeza. Sabíamos o que era enterro. Este ato nós acompanhávamos mesmo na tenra idade. Era um ato religioso, um dos atos de misericórdia do catecismo romano. Enterrar os mortos. Mortos que nunca enterrávamos, porque a cada badalo que se ouvia de casa, aquele comentário da minha mãe: hum, mais um que se vai, coitado. Imaginava esses mortos, era o que mais eu fazia, até meus brinquedos eram imaginários de tão escassos e de quebrá-los para ver como foram feitos, acabando por destruí-los. Quem seriam aquelas entidades? Mortos para nós eram pessoas, que tinham certo poder. Sem corpos, almas, fantasmas. Velhos, os velhos morriam. Se fosse criança virava anjo. Mas aquele som do sino do cemitério prendia-nos por uma emoção estranha da morte de outrem.
O sino da igreja era um sino diferente, que ressoava. Era um sinal de domingo, de festa. De obrigação somente a missa e depois algum parente vinha nos visitar, ouvíamos a prosa dos adultos, éramos os coadjuvantes mais participativos. A lei do “primeiro os mais velhos”.Então sentávamos a mesa e após as visitas servirem-se, fazíamos o nosso prato com macarronada e suculenta mistura. Era um dia de graça, ninguém batia no filho na frente do hospede. Era bom o domingo, mesmo que as segundas-feiras fossem cinzentas, restavam um pouco do calor do dia santo.
O tempo passou e hoje o som de moto com o escapamento aberto e aquele som do caminhão do gás...Um Beethoven mal tocado, escorrido pelo ouvido como cera. Credo. E meu Deus, pour Elise, os cachorros, que tem audição mais aguçada, não suportam! Talvez sintam como o apito do trem ou o som do martelinho do cemitério. Latem sem parar, assustados. Será que vale o preço de um botijão?
(Texto publicado na Tribuna Piracicabana em 21/03/09)

sábado, 14 de março de 2009


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Por minha vez vou comentar, como faz opankada no seu blog, que ontem vi os cover dos Be Gees aqui em Pira e recomendo. Hoje o texto tá bom pra cachorro.
Evolução das espécies

Desculpe-me Darwin, mas no desenho do esquema evolutivo dos hominídeos até o Homo Sapiens, o próximo elo seria o cachorro, mais evoluído que o homem. Sim, o homem evolui para a do Canis Familiares. Na pré-história já o cachorro foi domesticado, adestrado. Enormes feras se submetiam sob a guia de algum homem-macaco alfa ou mais recentemente sob as ordens de algum Barão posudo, da idade média. O cachorro via de regra aprendia e imitava os costumes do dono, a postura, o olhar, o jeito de andar, etc.
Talvez isso se deva ao mundo capitalista. Os cachorros de senhores abastados, são lhe dóceis, comem nas mãos, lambem os patrões, mas a necessidade de se buscar comida e por vezes, alimento regurgitado, faz os cães mais destemidos. Nas regiões pobres, após vários cruzamentos surge um cachorro, típico da pobreza. Um cão que revira o lixo e vai em busca do alimento diário, sem pestanejar, sem ligar para humilhação ou amizades inconvenientes nos bares e restaurantes. Sabe oferecer a outra face a cada patada humana. Não faz acepção de pessoas, se dá bem com sóbrios e bêbados. Como o cachorro do italiano da venda, que o barulho lhe acusava a presença. As latas do lixo freqüentemente estavam reviradas na calçada, as de leite em pó dentro de saquinhos, cortados pelos caninos, desciam a ladeira acordando os vizinhos. E logo gritava: È varda tomba latone! O engenhoso vira-latas brasileiro, conhecido até na Europa. Um cão de rua que aprendeu a se virar e a virar latinhas para sugar o resto dos alimentos. Um cão de ninguém, que sai em retirada para não ser alvejado por alguma pedra.
Hoje, em pleno sol de meio-dia, vi meu vizinho que ia pela rua e na frente um cachorro como se segurasse uma guia invisível. O cão o puxava, ia a frente. Tão parecidos, eram como dono e cachorro. Um cãozinho preto e roliço. Puxei assunto com ele para falar sobre o “seu” cão, que também parou para ouvir. Bem, assim, só pude lhe dirigir elogios e perguntar se o animal era seu. Não. Nem sabia quem era o infeliz em busca de dono. Disse que apareceu por lá, pedindo água e algum osso. Tinha sim um cachorro, mas não este. O seu era imponente, ganhara vários concursos de beleza. Este era um enxerido, aparece e desaparece quando quer, deve ser de algum outro vizinho, mas se dá ao luxo de transitar pela cidade, tomar ônibus e roubar os cafunés das pessoas, mas não dele o pseudo-dono. O vira-lata ouvia tudo calado, não se importava, nem um latido. Fingia-se de surdo, só olhando, cheio de sentimento. Fomos andando e quando chegou a casa, despediu-se de mim e entrou sem o cachorro.
No portão ficamos eu e o cachorro, olhando através de uma grade quadrada, com duas gaiolas na parede, um chão de piso branquíssimo e uma beleza fria e inóspita de uma casa amuralhada e bela. Ele morava ali, numa casa tumular. O lixo ficava suspenso num cesto de metal e só o caminhão do lixo o pegava. O cachorro dava-me estranhos olhares e nenhum latido. Lá no fundo daquela pirâmide moderna estava o seu elo perdido.Fui embora sem o cachorro. Ao passar novamente pela mesma rua, já tinha se ido. A casa continuava com aquele aspecto de arquitetura preservada e terrivelmente limpa, sem nenhuma viva alma. Um silêncio de casa sem ninguém, sem campainha ao alcance da mão e uma voz rouca que perguntava quem era. As palmas ecoavam pela garagem com dois carros novos. Um cachorro espiava pela porta, era o seu. Fui embora com medo.

terça-feira, 10 de março de 2009


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Homem na lua

(562 leituras no site da Tribuna Piracicabana e muitas criticas, não é das minhas melhores, mas?)

Os americanos chegaram à Lua, os soviéticos também. As nações de primeiro mundo fizeram estações orbitais no espaço. Ficavam dando voltas, imitando um astro gravitando ao redor da Terra. As viagens interespaciais, antes ficção, hoje são factíveis. Os avanços na área da robótica, da medicina e da física são surpreendentes. E aqui do lado do Cruzeiro do Sul, onde o céu é mais azul, o sonho de se chegar à Lua, de ter um astronauta brasileiro foi ganhando corpo; assim como a prosa que tive com o vovô Patusko, que já foi astronauta de testes, recusado no programa espacial por indisciplina. Sentado em sua cadeira de balanço, aparando com as enormes mãos os imensos bigodes, confessou que a sua dispensa se deveu àquele capricho: não cortar os bigodes de escova, pegava mal na mídia e dava problema para pôr o capacete espacial. Contou-me que muito foi adaptado dos testes da Nasa. Testes no ambiente sem gravidade, sem chão. Isso era difícil para um bonachão, gordo como vovô Patusko.Para flutuar: o candidato à astronauta teve de passar um ano com o salário mínimo, perdendo peso. Escolheram o melhor, o que sobreviveu e mandaram para o espaço. Mas a primeira nave tripulada sofreu dano ao retornar à atmosfera terrestre e o tripulante morreu atropelado por um meteorito. Erro de cálculo da trajetória de reentrada, mas o meteorito salvou o grupo de cientistas desviando a atenção para o pequeno meteoro. O segundo vôo caiu no rio Amazonas e os índios comeram o tripulante, assado já. O terceiro vôo deu problema na comunicação e era um domingo de futebol clássico no Morumbi.A imprensa noticiou o roubo da bola que o jogador lançou contra a arquibancada e sumiu no meio da torcida “organizada”, diziam que o vendedor de amendoim saiu com ela no cesto ou pôs num cone de amendoim para disfarçar. Até hoje não se sabe, mas a câmara de segurança flagrou uma jovem grávida ao sair pelos portões laterais, antes não tinha barriga. Enfim, depois de que os americanos fincaram sua bandeira na Lua e os soviéticos fizeram suas incursões além da camada de ozônio, há certo desinteresse da opinião pública. Chegar à Lua agora é coisa de político e de chinês. Ninguém liga mais, só as autoridades e a elite.Depois de tanto desinteresse, a multinacional do espaço Sideral & Sideral terceirizou os serviços e mandou um padre para o céu. O padre Josef Balon. Um astronauta ideal. Subiu aos céus dentro da roupa de astronauta, sem ser reconhecido para evitar merchandising religioso, constava no contrato. O religioso, a exemplo dos primeiros astronautas, olhou a terra e viu que era azul e que Deus não estava lá, na Lua. Desceu no astro parcialmente iluminado. Solitário, deu voltas aos pulinhos e em comunicação com a terra, voltou para a nave correndo, estava frio e solitário ali. Tinha a alma leve e o corpo também. De repente as comunicações foram cortadas bruscamente. O padre ficou lá, sem contato com o comando do programa espacial na terra. Ouviram-se chiados como chuva, rojões e nada de som humano, nada compreensível. O sonoplasta do programa espacial terceirizado então tentava pegar alguma estação de rádio do exterior e ver o resultado do jogo amistoso de seu time e também ver alguma coisa diferente além da lua, até que as caixas de som do imenso laboratório espacial voltaram a retransmitir direto da Lua: Pamonhas, pamonhas… pamonhas de Piracicaba.Por fim, conta Patusko, que o padre voltou. O programa obteve contato visual em tela quando da reentrada na atmosfera terrestre e o padre, faminto, via-se pelos beiços amarelos, acabava de “matar” uma última pamonha com palha e tudo. Desceu da cápsula na praia de Copacabana e na corrida até o banheiro o atleta de Deus foi ovacionado por civis e militares que se postaram para recebê-lo. Após a chegada do banheiro e da Lua, mais magro e grisalho, deu entrevista coletiva e oficial contando que lá, na Lua, viu estrelas e cangurus saltando de um lado para outro, que a terra não é azul e sim verde e amarela, Deus o esperava lá e o seu time, o qual não divulgou o nome, finalmente ia ser campeão. Mas e as ditas pamonhas?! O padre astronauta contou que já eram vendidas no espaço interplanetário e comprou de uma nave espacial que passava por lá, por um real a dúzia.Aqueles homenzinhos de orelhas pontudas não perdem um cliente, mesmo! Graças a eles, sobreviveu, porque tinha acabado o estoque de pílulas de água e de comida. E o retorno à Terra?! Foi fácil. Deixou a cápsula dar voltas ao planeta, até que entrou na atmosfera em segurança, sem queimar com o atrito do ar e então fez uso do tele-transporte para se materializar novamente no assento da espaçonave. Que viagem!

sábado, 7 de março de 2009

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Dapho

Lê-se a inscrição DAPHO no cocho antigo de comida junto à porta. Velho e comilão, a cheirar o vento, a ver o dono sentado e culturalmente acondicionado em sua mesa. Causídico ilustre no meio de muitos volumes de processos pendentes. A pendência e os prazos é o que mais domina o mundo dos humanos. Inventaram o relógio para contar o tempo que não podem controlar. Fazem projetos, lembretes, intenções e no fim tudo termina num inventário volumoso ou até em autopsia, a desgosto do morto.
Dafo (pronuncia-se assim) olha, por vezes chora, escondendo as lágrimas nos pêlos e nas dobraduras de seu rosto de canino velho, de Sharpei. Lá esquecido, alegra-se com um resto de comida, com o cheiro do dono e nem o fiscal do condomínio o percebe, se o vir não ligará. O mais longe que vai é quando desce as escadas para pegar o jornal matutino, que lhe servirá de cama no final do dia. Isso aprendeu a fazer desde filhote. Se o entregador se atrasar, fica aguardando no jardim atrás de alguma roseira.
Pela porta aberta reencontra o bípede, agora líder da matilha. Esse sabe fazer coisas interessantes e usa uma língua, que não sua, debaixo do pescoço, chamada gravata. Usa uns olhos postiços para ver, tem um olfato péssimo, que se não latir nem percebe o cheiro da chuva que se aproxima, para fechar as janelas. Um gato branco da mulher do dono também perambula por ali com uma coleira vermelha e seu nome gravado. Quando ela não está, o gato além de importunar Dafo, faz lembrar ao dono o asseio feminino e os hábitos culturais da estética, que por vezes, destarte a pressa e seus modos, são práticos, mas bárbaros. Sua letra é um risco mal delineado, que, ao reler, se socorre com os filhos para elucidá-lo.
Dapho aprendeu a repartir o espaço com o felino, porque também já foi “menino”. O gato some, reaparece à noite. Volta arranhado ou nervoso, ele não se apavora. Tudo passa. Os seus filhotes por certo errarão pelo mundo das vizinhanças, ou serão castrados por alguma madame solitária. O pior é quando o bichano lhe olha nos olhos, não o teme, não o ataca, mas é como se tramasse um ardil; Dapho sempre leva as culpas da armação do felino. O dono não consegue defendê-lo diante da esposa, por mais ilustre defensor que seja. A sua fama de bonachão, vagabundo e preguiçoso ficou na casa e até na consciência do dono mesmo.
O canil é o seu destino, decidiram numa junta de família, em última instância. Guarde-se uma foto no computador para as crianças. Percebeu Dapho a movimentação dentro da casa e que queriam dar-lhe um destino cruel, com piedade humana. O gato ficaria só, mas também a casa, porque gato não pára em casa, pensou Dapho, que nunca buscou o seu espaço além do jardim. Far-se-ia picar por alguma víbora como Cleópatra e escaparia à “piedade” do seu melhor amigo.
Assim foi-se Dapho. Peço somente ao dono que pegue o jornal no jardim para ler, ao menos neste sábado, esta crônica. Lembranças do seu cachorro. Dapho.
(Obs. Publicado na Tribuna de Piracicaba, sábado de 07/03/09, crônica criada a partir da descrição e discrição de um cachorro de um amigo)

sexta-feira, 6 de março de 2009

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O criador de tramelas

A forma perfeita é a circular. O melhor designer, a beleza é redonda. A perfeição é o círculo, diz o padre Vieira, embora eu ache que seja a espiral. Mas vamos as tramelas do seu João.
O homem sabia fazer tudo em madeira. Os desenhos da prancheta, por vezes, deixados de lado com um chá frio e uma bandeja de migalhas de pão, dava lugar a um projeto pessoal de íntima relação com a matéria bruta. Ia fazendo sem esboço, conforme a mente e os acidentes propiciavam a obra. Criações inimagináveis em designer arrojados e apreciados pelas pessoas modernas e ricas. Gostavam e pronto, compravam. Gênio simples e rude, seu João arriscava sua criatividade ao acaso, para ele o Universo fazia as formas do sucesso e um dia ganharia muito dinheiro. O dinheiro viria e juntaria a rodo, um pau de pegar água nos cantos que desenvolvera de forma ao seu gosto. Desenvolvera cabos de facas, bengalas, tudo personalizado. Ficava por dias em trabalho de criação, até que algum fato inusitado viesse a lhe dar a luz, como um Buda sob a figueira, esperava a Iluminação, o insight. Seu trabalho era arte, não artesanato, fazia-o sob encomenda e como Deus, não se repetia.
E foi assim com as tramelas encomendadas. O comprador, fazendeiro rico, queria tramelas personalizadas para a sua fazenda. Não aquela madeira retangular e verde pregada ao batente e que mantinha as galinhas fora da cozinha na porta de serventia ao quintal, nem as que serviam para manter as janelas rudes no seu lugar em dia de vento, mas algo diferente, que não sabia o que era e para isso contratara os serviços de seu João.
Seu João pensava e testava todas as idéias. Reconstituía em seu laboratório a porta, a janela e testava as tramelas. Foram dias, meses, sem sair de lá, num contínuo de tempo eterno, sagrado. A esposa estava se cansando de ver o marido naquele trabalho, exausto sem nada produzir, sem comer e beber. Era uma compulsão. Nova forma, um novo desenho na prancheta, marcas da ponta do compasso, lápis com ponta quebrada e riscos na própria mesa, era o impulso de ira a cada fracasso. Quebrava compasso, lápis, souvenires. Esmurrava a mesa impiedosamente. O temor da esposa, a cada visita ao ateliê, de se ouvir o pam-pam na mesa pelos murros da insistência de seu João. A presença da mulher o incomodava, tirava-lhe a concentração e o trazia à rotina cansativa daquele olhar meigo com sua travessa de biscoito caseiro e o bule fumegante do chá da tarde. E nada de sair sua criatividade embotada.
Numa destas visitas atingiu com um murro a tramela redonda na porta-teste. Metade caiu e metade ficou fixa no batente. Um golpe de sorte. Estava resolvido o problema. A porta abriu-se no espaço do meio círculo vazio. Obvio demais, solução advinda do acaso, de um acesso de raiva, essa era a idéia que o Universo lhe dava, o vazio lhe dera a solução, os dois lados do Tao, yin e yang. Refez o desenho, por peso e medida e um formato que propiciava abrir com resolução integrada, a prática e a beleza, de forma simples e registrou sua patente. A tramela abria e fechava com um pequeno deslocamento de contrapeso de adorno num dos cantos, que voltava ao repouso depois de a porta aberta ou fechada. Genial, gritaram ambos. Bonito, simples e lúdico!
Tomou o chá e os biscoitos, pensativo na consecução da obra. O modelo em série. Era só seguir o fluxo do acaso criativo até o colapso da ordem cósmica e da criação da obra: a tramela adornada.
Passados dias o dono da encomenda veio buscar as tramelas. Não estavam prontas. O homem passou pela porta aberta por uma bela tramela dourada. A esposa de seu João o recebeu. O marido veio depois e cumprimentou o visitante com a mão esquerda. A outra estava dolorida e inchada, atingida por muitas tramelas. Ainda não terminara a sua obra, o mercado que esperasse. Não especulava com a sua criatividade e talvez nem as vendesse, eram de muito apreço.


domingo, 1 de março de 2009


Para descontrair um pouco...
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Missão espacial

A ciência quase divina do primeiro mundo garantia o evento. Expectativa era a palavra. A humanidade chegaria a lua com um russo e um brasileiro na mesma missão. A fronteira final.
A missão espacial estava culminando para o lançamento da nave com o foguete. Milhões de litros de combustível. Como um bólido a nave ia ser lançada com os homens dentro. Dias antes os astronautas, como monges, ficam em retiro, também chamado de quarentena, para aquecer e preparar a mente para um mundo novo, o espaço. A transcedência. São heróis. A alimentação é feita por pastillhas de comida, nem a cozinheira, nem a familia vão junto. Estão sós no espaço. A missão pode fracassar por falha de algum componente minúsculo que seja, mas por falha humana nunca. É aprendizado, experiência. Se não voltarem vivos é porque foram sepultados no espaço. Vão para o infinito como deuses. Mortos no espaço, nas estrelas e a vista de todos. Estarão no livro de história.
Mas na quarentena houve um conluio entre o astronauta russo e o brasileiro. Iriam apostar corrida na superficie lunar com os carrinhos de coleta de amostras. Aquele carro parecido com formula I, com três metros de comprimento, de alumínio e mais leve, seis vezes menos peso na atmosfera de S.Jorge, chamou a atenção de vovô Patusko. Fórmula I ou carrinho lunar, voltara de vez à infância. Um jipinho elétrico que podia brincar por todo canto, sem a mãe para lhe puxar as orelhas. O russo por fim aceitou a proposta. Iriam fazer o americano nanar e sair a noite para dar voltas com o carrinho, no qual os cientistas americanos puseram toda a sua tecnologia, inclusive o comando de joystick. Patusko argumentava que a tecnologia era americana, mas o aluminio e o aço eram brasileiros.
De nada valeu a quarentena pré missão, a pregação cientificista da conquista do espaço, da escala evolutiva de espaçonautas: cadela, macaco e agora o homo sapiens. Eles queriam o próprio espaço, brincar de Formula I na lua, jogar areia na cabeça dos homens sérios. Não se contentavam com os pulinhos encenados do primeiro americano na lua, com uma bandeira esticada sem vento, com um aperto de mão espacial representando nações contenedoras, queriam brincar. A ciência para eles era um jogo de probabilidades, de ritmos, de possibilidades holísticas, de divertimento.
O russo posicionou-se na linha feita no chão. Patusko acelerou para aquecer o motor, um ronco silencioso, harmonioso, tinham de cuidarem-se para não cair em alguma craterra. Tinha-se a impressão de que na lua sempre é noite, umas sombras azuis-pálidas sobre um montículos brancos frios e uns buracos como ventosas na superficie e saudade de casa. A corrida iniciou-se pela gravidade diminuta, carrinhos andando desengonçados, sem grande estabilidade ou freios ABS. Os carrinhos batiam em montículos daqui e dali, barulhentos. Um facho de labareda saiu de uma craterra. A enorme fera pôs as patas para fora, ia subir. Então apareceu São Jorge com seu cavalo branco, armadura corta fogo, uma lança brilhante e fria e fez o lagartão descer para o sono, não era lua cheia ainda. Ufa! Mas o dragão estava vivo!? Sim, era de estimação e saia a tarde para lagartear, enquanto o santo cavaleiro fazia equitação. A solidão do infinito prega peças, vê-se coisas. A noite retornou ao silêncio gostoso, enquanto lá na terra os galos cantam no paiol e a lua vai-se no arrebol.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

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...Santidade, estão todos mortos

Uma leitura do filme A missão

O embaixador de Portugal, enquanto acaricia uma espécie de nossa fauna, calmo, balança os ombros e diz com ironia ao bispo que “a vida é assim, o que fazer?”. É a política. Se todos das missões, velhos, crianças, mulheres e homens, foram mortos, o que fazer? “Não. A vida não é assim, nós que a fizemos assim”, diz o prelado. Dirige-se a sua sala e dita ao secretario uma missiva ao Papa. “....Santidade, estão todos mortos..., melhor, escreva: estão vivos, nós é que estamos mortos”.
O violento chama de selvagem a vítima que grita pela sua impiedade e zomba do direito de espernear e sangrar. Desconhece a própria impiedade que volta contra si, como o mercenário Mendonza que foi rejeitado pelo amor da bela dama, que talvez não quisesse conluio com aquele tipo de covarde. É incapaz de amar, sua impiedade o fez duro, insípido. Por certo, porque escolheu outro, que apesar de irmão do mercenário, é seu antípoda.
Mendonza promete à amada não matar o irmão. Sai de sua boca uma negativa perdida, sem saber o que fazer. Está só, sentindo-se traído duplamente. Sabia que mataria. É seu código. Outra vez morre sem amor o homem e aparece o mercenário. Capitão Mendonza. Não suporta o ciúme e a humilhação. Os ressentimentos vêm como um rastilho de pólvora e mata o adversário, em duelo. Apunhalado morre o oponente seu irmão, sem saber reagir a força. Matar em duelo não é crime, mas Mendonza não pode mais viver como antes. O mundo está fervilhando e o caçador de nativos aposentou-se a mendicância. Isola-se, desprezando comida e água.
O padre Gabriel encontra o mercenário, amuado num canto. Ressuscita sua ira. O mercenário que lhe atacava a missão decaído, não muito diferente de suas vitimas – usou o caminho errado, porque um homem prostrado assim é para se rir mesmo. Não há mais vida, diz o próprio; mas se houvesse, tentaria a remissão de seus atos, provoca o sacerdote. Volta para a missão. Carregando como um jegue de carga todos os seus pertences e seus pecados. O mercenário voltou só, indefeso. Os índios podem matá-lo também agora! Seria um alivio ao homem, mercenário de si mesmo. Podem. Talvez queiram. Não o fazem, cortam as amarras da bagagem e jogam nas águas o que lhe restou da vida mercenária. Chora como criança; os índios riem e o acolhem.
Os portugueses atacam a missão indefesa. Mendonza pede permissão ao superior para lutar. Padre Gabriel não o permite, mas vai, atendendo aos anseios dos irmãos missioneiros. Padre Gabriel não pega em armas. Para ele se a vida não for por amor, não vale a pena ser vivida, se agarra ao Santíssimo e ao seu sacerdócio, em procissão. Os fogos cruzados sob o comando de um capitão, contrariado, percebe-se, cumpre ordens e mutila-se, um mercenário fardado. Vão matando crianças, velhos e mulheres, profanando a vida e a natureza. Gabriel segue paramentado em procissão levando o santíssimo, muitos vão caindo ao seu lado sob artilharia, mas ele ainda segue, não chegou a sua hora. Mendonza é alvejado antes, perto dali. Agoniza assistindo a procissão e Gabriel com o Santíssimo. Um balaço acerta o peito de Gabriel, que rodopia e cai morto. Deus não deu nem agonia ao pai espiritual do ex-mercenário, o levou da vista deste. Está tudo acabado, dirá o descrente. Os olhos de Mendonza se fecham por não poder ver, revirados no olhar da morte, após a queda de Gabriel atingido. O Santíssimo é juntado do chão e outros índios, seminus, ainda vivos, o tomam em procissão até a morte, conscientes, alvejados sucessivamente pelos selvagens brancos, enlouquecidos. Nós. (...Santidade, todos estão mortos...Estão?!)

domingo, 22 de fevereiro de 2009


Férias no Chalé

Era um dia de férias, frio. O casal resolveu descansar num conjunto de chalés, todos muito iguais e belos, num clube aconchegante à beira da estrada. Esperavam algum sol, mas após a chuva e garoas, só veio vento e um frio inóspito. O jeito foi se acalentar na cama com uns livros ou um cochilo, no silêncio entrecortado por rajadas de vento.
O rapaz logo se entreteve com a leitura, a mulher se encorujou num canto, coberta por grossa manta. Lá fora os passeios e atrações do clube estavam comprometidas pelo mau tempo e retração do casal. A moça de um lado, ele de outro com os olhos na Metamorfose* de Kafka. Ela se rendeu ao sono e ele ao pesadelo do estranho monstro de Kafka. Tinha de despertar dali, ver as atrações, logo seria a hora do almoço, o remédio para febre maculosa, que tomava devido a exposição a picadas por micuim, revolvia o estomago. Ela deitada revirava como um carrapato estrela e tentava lhe pegar as pernas frias, com dedos duros a denunciar o rigor do frio inóspito.
Pôs o livro de lado. Por mais atraente a leitura, não tinha medo de monstros marrons com perninhas, mas de carrapato e micuim. O que fazer? Pegar um café quente para a esposa sonolenta. Foi.
No restaurante vazio foi servido. Trouxe a xícara com cuidado e esmero aquecendo as mãos nela. Quase a derrubou ao tropeçar nas pedras entre gramas, estava sem os óculos de leitura. Conhecia o percurso até o seu chalé. Abriu a porta, entrou. A mulher ainda dormia na mesma posição. Anunciou o cafezinho: Eta, cafezinho bom, hum!...A mulher resmungou como uma estranha e já dormira de novo. Que sono pesado!
Sentou-se na cama. Não achou os óculos sobre o criado-mudo. Ela devia ter feito a sua costumeira arrumação no quarto, enquanto fora ao restaurante. Era neurótica por organização. Devia saber que não enxergava bem sem aqueles óculos! Ficou a pensar. Deitou-se com ela e cochichou algumas palavras de amor ao seu ouvido. Ela sorria com as cócegas de seus dedos acariciando o seu lóbulo. Acordou, abraçou-o forte e lhe deu um beijo como nunca houvera dado.
Ante às condições de frio e vento lá fora, deixou-se ficar com ela na cama, como dois casadinhos. A porta ficou entreaberta quando ele entrou e vinha um vento frio de congelar orelhas. Incomodado, levantou-se e foi fechá-la. Qual foi o susto, quando viu na sala um estranho no sofá. Era um associado, mas ali? Foi logo dizendo:
- O senhor se enganou de chalé, amigo! – e o estranho lhe respondeu, bem liberal:
- Não. É o senhor que se enganou de esposa. Essa aí é minha, nós nos casamos ontem.

*A Metamorfose – Obra Literária de Franz Kafka

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

A Cigarra e a Formiga

– Por uma nova fábula -

Para onde foram as cigarras? O seu cantar se ouvia da sala de aula. Um guizo divino no entardecer. Um cantar para o sol, um zunido que ninguém cala. Do tronco cantam a sós ou em grupo. Fabulosas. Viram-se desengonçadas no tronco, para a esquerda e direita e levantam as ancas para cantar. Uma coreografia? Uma dança antes de começar? Começam e param, por vezes, como que afinando e vão num crescendo até conquistar os horizontes com um fôlego fenomenal.
Cantam, enquanto as formigas passam em fila, carreando folhas verdes para o formigueiro, sem dizer um pio. Andam em frente e só se comunicam entre si. Se algum animal ou homem lhe obstruir o caminho, picam, desviam, fazem novas trilhas. São previdentes, armazenam alimento para o inverno. Já as cigarras vivem somente em seu tronco e pelo tempo que Deus lhes dá, as formigas pensam que o seu trabalho lhes dará vida longa, mas não sabem cantar...
Intervalo. Com um graveto a professorinha revolvia as folhas no chão. Um vento invernal soprava, as folhas verdes foram ceifadas pelas formigas. A trilha delas pelo chão escondida sob a folhagem ressequida levavam a vários formigueiros. Agora só alguns troncos despidos permanecem clamando aos céus. A moça procurava algo no chão, absorta, até que parou com as duas mãos no rosto, não se importando com a fina garoa sobre si, no oceano dos sentimentos líquidos. A alma feminina que chora por aquelas cascas, que caiam insepultas, como que atiradas sem espírito. Cigarras.
Bosque de inverno. Cessou ali o guizo das cigarras. Ia chegando o frio. Sob as folhas secas viam-se alguns insetos variados, como formigas, a transitar numa trilha escondida, enquanto as cigarras silenciaram nos troncos. Um banco de madeira velho, curtido, de onde se vê o cenário abatido pelo vento úmido. Farfalham a esmo as folhas secas, sem viço, mortas, amareladas cobrem o solo, num tapete multicor a espera de outras do alto que se ajuntam no chão, cheirando a pessegueiro velho. Somente ouvem-se breves silvos, tímidos, de algum pássaro solitário, em despedida, que se vai rápido, fugindo do frio inóspito, pelas alturas lúgubres dos céus de inverno, some. Silêncio.
Debaixo dessa realidade bucólica, sob a terra a vida continua, seres habitam, além dos olhos do observador. Lá como o bosque de La Fontaine. Sob folhas velhas, um jardineiro atento verá uma trilha de formigas, uma linha sinuosa em desuso, esquecida, um caminho abandonado. Já se recolheram junto à panela aos pés da rainha. A cigarra cansou, já não canta, esgotaram-se suas forças, foi se agarrando sem fôlego na casca da árvore. Exaurida, vai cair como as outras, como num salto.
Por fim, a cigarra desceu da árvore, com dificuldade, com fome e sede. Caminhou pela trilha vazia até o formigueiro. Reconheceu as formigas que passavam todas as manhãs sob sua árvore com folhas às costas, admirava-as. Ainda na porta a formiga deu-lhe um agasalho e um frutinho. Depois que comeu e bebeu, a rainha das formigas quis vê-la. Abraçaram-se. Trocaram protocolos. A formiga secretária trouxe um contrato para que a cigarra pudesse assinar. Ficaria desde que, no verão cantasse para a rainha botar seus ovos com mais alegria. O inseto não aceitou o emprego, voltou sem assinar o papel e preferiu morrer contando no bosque, nas velhas árvores de uma escola rural, a ser escravo das formigas daninhas.

Ofereço aos professores e a minha professorinha que fazem trabalho de formiguinhas e tem de ter o fôlego de cigarras.

sábado, 14 de fevereiro de 2009


“Um pequeno tombo já os punha a nocaute! Nós, crianças, não percebíamos.”

A máscara do Zorro

A polícia montada de Los Angeles, EUA, na tarde de ontem, prendeu um homem que se fazia passar por surdo-mudo. De carroça, o mímico carregava o figurino do rebelde Zorro. O rebelde ia voltar a agir, pensaram. O mágico amador sumiu em meio do caminho e sobraram somente alguns vestígios, uma máscara e um bilhete para Disneylândia.
Na época ninguém desconfiava da identidade do Zorro. Um fidalgo que estudava esgrima na Espanha. Um Quixote que se deu bem no novo mundo a custa dum criado e dum pai rico. Eram dois, Diego, que tinha o dom da esgrima e o alter ego surdo mudo, ouvinte, mímico, mágico, roupeiro e cozinheiro, Bernardo. Os inimigos eram homens maus, todos de bigodes e meio parecidos com Diego de La Vega. Com cargos de comandantes e generais faziam o mal por ambição, oprimiam o povo. A justiça estava nas mãos débeis de um sargento gordo, ingênuo e ébrio e nas do justiceiro noturno. O povo eram os camponeses, servidores das estâncias e alguns índios que restaram por ali.
Descobriram que na casa de um tal Alessandro se tramava política. O dito surdo-mudo usava passagens secretas por trás de guarda-roupas, cristaleiras e outros móveis, para passar de um anexo a outro da residência e lá escutar os planos dos inimigos, em cujos ouvidos sortudos sempre se faziam ouvir. Desconfiava-se que o sargento gordo do povoado dava cobertura ao bandido por alguns copos de vinho e por boa conversa. O cabo que servia com o dito comandante via-o sempre na taberna a beber. Há indícios de que o Zorro queria conquistar a Califórnia e depois o mundo moderno, como defensor dos pobres e oprimidos.
Esgueirava-se por trás de uma ramagem, onde treinava o seu animal, arredio a estranhos. Um esconderijo bem camuflado e de onde surgia sobre a montanha em seu cavalo negro, empinando, empunhando a espada a tocar o céu e a fazer descer raios. Descia à noite sobre o vilarejo para abrir prisões e marcar a grafiteiro o seu Z por todo o canto. Os adversários não morriam pelas suas mãos. Não assustava as crianças! Quando morriam era por alguma queda ou acidente que causavam a si mesmos. Zorro limitava-se a marcar-lhes o destino. Acordavam com o Z na testa ou nos fundilhos.
Fazia a maior bagunça nas hostes inimigas. Subia sobre os telhados do quartel, escapando de tiros dos soldados, escalava muros e paredes, enfrentava vários soldados ao mesmo tempo, derrubando-os num só golpe – é a força do mito. Um pequeno tombo já os punha a nocaute! Nós, crianças, não percebíamos. No chão a espada dele valia por dezenas das dos soldados e depois, subia o muro novamente, desviando de algum eventual tiro, pelo alerta inadvertido de alguma ordem de fogo de um sargento atrapalhado ou de um comandante colérico. Sempre escapava. No alto, a um assobio que só o seu cavalo ouvia, a montaria se postava do lado do muro alto e branco do quartel, conforme o combinado: espreitar o momento oportuno numas das ruelas sombrias, com as orelhas em pé, a ordem de comando, o assobio. O cavaleiro, num salto de pernas abertas, cai das alturas sobre a cela novinha e vai embora zombando dos adversários que os acompanhava pelas pradarias, numa corrida de cancha reta, onde só o mascarado sai vencedor. O cavalo do Zorro corre mais, é mais bonito, elegante e por fim, quando cansa da brincadeira a despedida, fazendo a corte com a espada: Adios, senõres!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009


Eta, cavalo bão! – Publicada na tribuna Piracicabana em 19/12/08

Um cavalo bom de tração e montaria. O bater de patas na cocheira, o olhar de mansidão daqueles olhos enormes e redondos, mastigando ração. Conhecia o dono. De manhã, após um assobio ouvia-se o bater de cascos pela invernada. Parava imponente, mas abaixava humilde a cabeça ao laço do destino. Puxar carroça ao mercado. O cavalo fugira algumas vezes e logo fora achado por vizinhos. Ia comendo o capim da beirada do sitio e logo passava a cerca sem se dar conta da demarcação humana. Vinha humilde e com ar de inocente pela rédea de algum tropeiro, separando dos outros perdidos em busca da liberdade.
Quando morreu o sultão, o dono não quis comprar cavalo ali, porque os ciganos tinham fama de pintar os animais com carvão e vendê-los à noite. Não conseguia achar outro animal igual ao seu. Cavalo de saudosa memória. Bonito, imponente, forte, com uma marca branca na testa, sinal de sorte. Virava-se com um burro mesmo, que empinava arredio na carroça e fazia o cocheiro valer-se do chicote, quase em desuso, devido à obediência do cavalo de outrora. Era um burro empacador e nem o látego o tirava do lugar. O dono lhe oferecia alface, cenoura e irado, acabava lhe dando o chicote no lombo mesmo, sem nenhum resultado.
Saiu à procura de outro animal numa montaria emprestada. Passou pelos ciganos e foi em frente. Chegou a um sítio de um caboclo. Foi abrindo a porteira sem desmontar. Antes que passasse no caminho de serventia, um homem apareceu acompanhado de um menino armado de espingarda. Teve de parar ali mesmo sob a mira inocente de um mau atirador. O pai veio ter com ele. Para seguir tinha de pedir permissão, aquilo era propriedade privada. O menino de chapéu atolado na cabeça mirava o estranho e perguntava ao pai se já podia atirar, como quem pratica tiro ao alvo. O estranho se escondia na sombra do mourão e se explicava até que o pai mandou o menino baixar a arma.
Entrou no sitio e o dono da propriedade lhe foi gentil, dizendo que se estava a negócios não precisava ir mais longe. Tinha ali mesmo um cavalo de primeira. Foi negociando e enredando o estranho, o filho o acompanhava com a arma abaixada. Uma conversa simpática foi tomando conta dos dois. As lembranças do cavalo morto, suas façanhas, os préstimos dele. O velhaco serviu um café ao visitante ameaçado, fê-lo sentir em casa e já à tardinha, escurecendo, foi com ele para cocheira junto com o menino à socapa. Ali estava o cavalo. Na verdade, um pangaré cansado e velho, à sombra da cocheira e visto à silhueta. Mas a caboclo ia dizendo que era bonito, altivo. Igual ao seu sultão. Olha os dentes, a pelagem, o rabo, as patas. O trote dele é belíssimo, forte e marchado, as orelhas bem formadas, era um cavalo de filme mesmo. Puxava toras, carroções de milho, montaria para mulher e com pouca comida, com pouca água, tinha a resistência de um camelo.
O filho seguia a conversa com os olhos pra lá e pra cá, já sem o ímpeto do primeiro alvo, admirado com as palavras do pai. O dono do Sultão, ainda sentido pela morte recente de seu cavalo, com pouco dinheiro, ia transferindo o seu afeto pelo novo animal. Aquele quadrúpede ali mexia com o seu coração. Eta, cavalo bão! Sentiu. O negócio estava quase fechado, mas o menino se interpôs: - Paiê, se o cavalo é bão ansim, vamo ficá cum ele, ué!
Da contribuição verbal de Alessio Quartarollo

O coroinha e o estilingue

O brinquedo de menino peralta era o estilingue. Joãozinho mirava o alvo e pá! Caía andorinha, tiziu, o que tivesse asas derrubava. Só não acertava em avião, devido à altitude e em anjo de igreja, que era um alvo parado. Até no cachimbo do avô já lançara um projétil. O velho correu atrás do neto, mas, hilário, perdoou o depositário de seus genes, também fora peralta em criança.
Apesar de todas as malcriações, era o coroinha, sob protesto de uns e outros o padre mantinha o herói das travessuras a servir lhe no ministério sagrado.
O padre bonachão ouvia o assunto, sério na frente dos reclamantes, mas ao adentrar a sacristia ria à só. Não tivera tempo de ser menino, não teve tempo de fazer peraltices; na idade da razão, os pais lhe colocaram no seminário católico. A vocação veio depois do fogo das tentações, sem mulher e sem filhos, velho, tornou-se o que era. Padre de vila.
O padre solene, olhando para o povo, de mãos juntas, não perdia os olhos do acólito inapto. Se fosse pegar a água antes do vinho, comunicava-se em código e por caretas que pegasse o vinho. O povo não percebia. As pessoas, em estado de graça vinham mansas e puras de coração, viam pelos olhos da fé o corpo, o sangue, a alma e a divindade de Cristo e o peralta com pintas de sol, com olhar de soslaio, de quem reconhecia suas vítimas: a mulher do barbeiro de quem quebrou a vidraça, a moça que acertou o traseiro e outros tantos casos, perdoados em confissão particular.
As coisas iam bem até que quis acertar uma andorinha em vôo dentro da Igreja e quebrou um vitral. Ali era a casa de Deus, esbravejou o padre ao saber pelo sacristão. Ia chover dentro e até vir o pedreiro... Ia ficar caro. O povo que mantinha o templo com dízimo ia cobrar dele a falta de cuidado com o coroinha, que mantinha aos serviços do altar. Resolveu tomar uma medida extrema, corrigir o garoto e aplacar a ira da comunidade. Tomou o estilingue de Joãzinho. O padre fez-se de insensível, reteve a arma consigo e para o menino não pegar colocou-o no bolso, por baixo da batina. Bem seguro.
O menino seguia bem, acabaram-se as peraltices e o padre estava feliz, resignado, mas mantinha o estilingue ali, no bolso debaixo da batina, consigo. Numas das missas dominicais o bispo, que chegara ao meio da cerimônia, participava do primeiro banco, cheio de fé e dizendo as orações conjuntamente com o padre, de cor. Fraco de oratória, sem manifestar seu pensamento cotidiano e sem alvejar os corações do povo, tinha medo até de falar. O menino, ao lado, suspirava desatento. Era a hora de servir o vinho. Então fez os costumeiros gestos com as mãos sob a mesa, mas o acólito não o servia. Manteve os olhos enlevados e fingiu uma dispersão angelical até que abaixou, beijou o altar e sussurrou: “...o vinho, João...João, o vinho”. E Joãzinho disse: “dá o meu estilingue, seu padre!”. “O vinho, pelo amor de Deus!”. “Dá meu estilingue agora!”. “Depois. Aqui não!”, retrucou o padre, todo paramentado. “Então não tem vinho, seu padre”. Assustado, na hora mais solene da missa, pediu que todos meditassem sobre aquele mistério e fechassem os olhos. Quando todos assim fizeram, virou-se num aperto pra cá e pra lá e levantando toda a indumentária litúrgica, puxou o dito estilingue e passou ao coroinha.


Texto e enredos criados da contribuição verbal de Alessio Quartarollo, meu pai.

Seu Vizinho

Seu Vizinho, era como o chamavam. Logo associei com a brincadeira de infância, nomear os dedos das mãos: seu mindinho, seu vizinho, pai de todos, fura bolo, mata piolhos... Vizinho era morador contíguo ao meu jardim e a quem nunca lhe perguntaram o nome, talvez por ser sisudo quando não quer conversa. Era de um bom dia gutural e seco, olhando para o outro lado. Não esperava assunto, já ia andando.
Fumava, via-se em meio a nevoa, enquanto cortava a grama. Ia de lá para cá com a máquina barulhenta a retaliar gramíneas e pedras pela trilha verde de cheiro adocicado. Tossia empunhando a máquina com a mão direita incansável, enquanto fumava com a esquerda esquecida, como se a direita não soubesse o que a esquerda fazia. O Rom-rom da máquina acordava a redondeza toda e podiam-se ouvir bons-dias contrariados pela rua, mas era assim. Ele ditava a hora de se acordar e de responder aos cumprimentos. Se alguém da família lhe alertasse, dizia que já era tarde.
A máquina ia e vinha no imenso jardim, colhendo o excesso de mato, grama e as flores da esposa que olhava da porta, sonolenta e preocupada. O marido não se emendava mesmo! Seu jardim florido ceifado junto com o mato e como se diz, o trigo e o joio, até que o motor e o ruído pararam. Alivio. Não. Porque numa das idas e vindas com o cortador, cortou o próprio fio elétrico da máquina. Sem se dar por vencido, emendou-o com fita isolante, sem desligar a energia e continuou o vrum ensurdecedor e novas paradas, por cortar o fio novamente. Agachava fazia o reparo com as duas mãos açodadamente, enquanto o cigarro queimava na boca. Foi cortando, cortando, até que passou com a máquina sobre um cano plástico, encharcando o quintal. Assim mesmo recusou ajuda, deixou o cano lá até que o encanador fechou o registro, a chamado da esposa.
O tempo é outra coisa que o Seu Vizinho o faz de maneira própria. Cinco minutos para tudo. O seu carro está obstruindo a saída e entrada da garagem do domicilio alheio, o tira em cinco minutos, seus cinco minutos, contados vagarosamente. Seus assuntos sempre são prioritários. Quando vem ainda quer apertar a mão aflita e um sorriso de “pra que pressa?”.
Ao conversar na calçada, na frente dos transeuntes para distrair o mal entendido, argumenta continuamente, falando de si, olhando para dentro de um mundo que só ele acredita. É um homem arrojado, bem sucedido, um boa-vida até. Gosta do que é bom. Bebe o seu uísque caro e fuma o seu cigarro com filtro. Compra o que lhe aprouver, de um lugar o dinheiro sempre vem. “Alguém tem que me dar”, arremata. Um ar de malandro ingênuo com o que lhe sobrou, bebida e cigarros à noite, nos engodos dos anos. Os brasões da família já foram para o reciclável, mas ele ostenta o nome como se vivesse na Idade Média.
Com o tempo passou a invadir meu jardim, quis até aparar minha grama, consegui evitar, sem ofendê-lo. Adoro borboletas e beija-flores por ali. Já não ligo se estaciona seu carro na frente da minha casa. O faz por pretexto, para conversar, eu sei. Quer repassar todos os “bons” livros que lê, é como se ninguém soubesse daquele enorme tesouro que possui. Li alguns de relance, são boas receitas de como fazer isso e aquilo, mas não ensina o seu Vizinho a conviver com o “seu Mindinho”.

domingo, 1 de fevereiro de 2009


Efeito Espacial

Acordei com muitos latidos e um clarão na janela. O vento de um falso outono revolvia na noite, num vrummm medonho. Mais cadente, um barulho supersônico de algo a deslizar sobre as bananeiras do quintal. Que luar intenso! Acordei minha esposa, admiradora de luares. Estava frio, mas tremia de medo. A árvore vista de nosso leito estava com a copa iluminada por baixo. Por que sentir medo? Afinal era só mais um fenômeno atmosférico. Outono na primavera, frio no verão e estas coisas que qualquer cientista explica muito bem. É o homem que anda mexendo com o planeta e ele estufa. Os latidos dos cachorros eram coisas de algum gato sobre o muro. Ia dormir novamente, mas minha esposa atentou para a estranheza. As árvores se mexiam muito e não ia chover. Aquilo não era normal!
Não me restou alternativa, a não ser sair para o quintal da casa, no relento frio da madrugada, em meios aos latidos e ver aquele fenômeno à porta da minha cozinha. Um objeto luminescente giratório planando sobre o quintal. Lá estava uma nave alienígena. Voltei para dentro e fechei a porta com tranca, com medo, mas fingindo coragem. Era melhor não ter visto, agora tinha de tomar uma posição, voltar lá fora e...sei lá, estabelecer contato, antes que ela o fizesse e de camisola. Já pensaram?! Eu era o homem da casa e fui.
Iria usar o seguinte termo: a primeira diretriz da frota estelar, do seriado Star Trek, de “não-interferência” em outros planetas e quintais. Meu único argumento conhecido. Tive que acalmar o cachorro que ficou atrás, nas minhas canelas, medroso como o dono, a minha esposa olhava da porta me dando coragem e me empurrando com um gesto de “vai”. A nave era pequena demais, uns cinqüenta centímetros. Aquela coisa luminosa e verde girava de atordoar dançarino. Que falta fazia um capitão Kirk, um Picard! Como falar com aqueles homenzinhos?! Sem fasers ou outra arma do século XXIV, ia me socorrer com uma pá de jardim. A abdução estava descartada – pensei - porque eu não caberia naquele veículo minúsculo. Mas num segundo me vi dentro daquela navezinha, em miniatura como meus abdutores, olhando para o telhado da minha casa, com a parabólica e tudo. Senti vertigem. A pá de jardim do meu arsenal de defesa ficou caída, quando me sugaram à nave.
Navezinha fria, eu de pijama listrado e com toca colorida ali, num encontro de protocolo interplanetário, numa negociação futurista. Falava o trivial português, um pouco caipira, que minha mulher entendia pela convivência. Pensei que falassem uma língua meio anfíbia, vulcano, ou outra do seriado Jornadas nas Estrelas. Mas falavam um português “difícil”, como os lusos mesmo. Ofenderam-se com meu linguajar do cruzeiro do sul e minhas alegações sobre invasão de quintal alheio, da “primeira diretriz de não-interferência” e lançaram-me sobre as gramíneas, ainda em miniatura e humilhado e foram para outros quintais do terceiro mundo, covardes! Escalei pelas ramagens do alecrim e passei sob o portão. Meu cachorro parou de latir, veio me cheirar em má hora, se gostasse de mim poderia ter me devorado, não fosse um rato que passeava comigo do outro lado do muro. Jogou-me de costas numa lambida e foi em busca de outra presa de maior estímulo, a caçador. Fiquei dentro de uma casca de banana até o medo passar. Usei a casca como escudo e fui. Passou um grilo na minha frente, que susto! Parecia uma moto em rua principal. Tive de me ocultar de algumas aves notívagas, esgueirando até perto da máquina de lavar, quando um jato de água me jogou no inicio da trajetória, chamando a atenção dos animais domésticos e da coruja que se postara num galho da goiabeira. Minha mulher segurava um chinelo na mão, confundira minha movimentação com uma barata. Espreitava-me. O som miniatura da minha voz se perdia naquele quintal enorme.
Sentia-me num mundo perdido, pré-histórico, em meio àquelas feras soltas ao meu encalço, dentro do meu quintal. Tinha de fazer algo. Minha esposa que espiava da porta, não conseguia me ver mais e se andasse me pisaria. Foi então que, nessa retração à pré-história, descobri um palito de fósforo perdido no chão e com esforço esfreguei-o no cimento e as feras temeram-me. Levantei o palito como uma tocha e fui indo em direção a minha esposa, para que me visse. Confundiu um vaga-lume a barata de antes. Ia chinelar. Mexi logo o palito no ar para fazer um sinal de fumaça, não sabia bem qual, mas saberia que eu era uma vida inteligente afinal. Não deu certo. Ela errou o golpe, visto que chinelava e virava o rosto para não ver, tamanho o asco. Afastei-me, fiquei com muita vontade de lhe queimar os dedões. Que raiva! Mas precisava do palito aceso. Ela cresceu para cima de mim, arrogante e veio em sombra e em pessoa a me sobrepujar. Eu era um rato, uma barata, um vaga-lume, um...monstrinho. Cai no ralo, não sabia nadar, o palito apagou, mas ficou preso. Fui subindo, vendo-a por entre o gradeado, à minha procura. Ia me matar afinal. Não sabia desse seu lado tão pérfido. Ia me matar! Sem nenhum julgamento, sem nenhum motivo! Mas pude ainda observar debaixo a sua excitante figura, esguia e bela sob a camisola. Desistiu por achar-me sem importância. Não estava à sua altura.
Dormi dentro do ralo, segurando no palito de fósforo apagado, no som das gotículas derramadas pelo vento, numa acústica tubular. Sentia-me um rato, quase sentia o vento pelos pêlos das minhas narinas alongadas. Ela voltou, senti-lhe o cheiro agridoce de seu medo. Agora já assumira minha condição selvagem. Os alienígenas que dominassem o mundo, que não era mais meu. Fugiria para outro quintal e dali para outro até achar o meu destino. Ia saindo quando meu cachorro me deu uma patada, rodei no cimento até a porta, fiquei debaixo do salto da minha esposa. Não me viu e parou para dar os carinhos que eram meus ao cachorro. Eu me escondia. O cachorro cheirava, cheirava e pelos carinhos esqueceu da presa. Aproveitei a distração e iniciei a retomada do meu lar, ainda que na pele de um espécime. Fui sorrateiro, esquivei-me pela cozinha. Podia me esconder para comer qualquer migalhice. Após o café, minha esposa pegou a toalha e jogou as migalhas aos pássaros enormes. Não me sobrou nem uma casca de pão seco, em meio àquele perigo de monstros alados. Minguava à fome. Era o último na cadeia alimentar, presa para qualquer passeriforme, pombas, pardais e até mesmo aos tico-ticos. Minha voz era qual um zunido de um besouro.
Minha esposa saía, olhava para o céu e chorava, pensou que eu tinha sido abduzido. Como dizer para ela que eu estava ali, vivendo a vida de um animal qualquer, rejeitado pelos alienígenas pelo meu português ruim. Chorei também, depois de muito tempo. Já não a via, não a olhava, deixava que sua silhueta preenchesse o espaço enorme à luz frágil da cozinha.
Ela era uma caboclinha feliz e eu não sabia o que dizer a quem sempre me conhecera pela convivência, mas era um selvagem pela primeira vez. Pulei sobre uma viola velha e caí dentro do estojo, tentei com minhas patas dedilhar uma moda de viola. Mas era muito ruim como violeiro, deixei me ficar qual vivente anônimo na natureza. Ela triste pegou a viola e tocou uma canção com doçura, saudosa de mim, ou daquilo que eu era, deixando-me beber de suas lágrimas e finalmente me viu dentro da viola e de seu coração. Pulei entre as cordas e comecei a crescer novamente como um príncipe moderno, com meu pijama listrado e minha toca colorida. Se não somos alienígenas, podemos ser alienados dentro de nossa própria realidade.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Publicado em 05/09/08 na tribuna Piracicabana
(Breve apanhado sobre a peça do grupo Andaime)

Antonio Chapéu (que volta aos palcos, como ator, sempre), Márcio Abegão, Bruno Agulhari, Maria Trevisan, Barbosa Neto, Jonathas Beck e Charles Mariano. Na parte técnica, Jonathas Beck toca as músicas ao vivo e Luzia Vaz opera a luz. Aqui coube o nome de todos. Na publicação do TP, coloquei os nomes dos atores em parentesis, mas para adaptar aos números de caracteres tive de omitir o da iluminadora, que por sinal é muito iluminada.)

Patacoadas de Cornélio Pires

Encontrei-os em sua vidinha – senti-me o próprio Cornélio Pires. Trajados a costume, as pernas das calças enrodilhadas no tornozelo, com “as mão no jueio e um cumprimento respeitoso”, ficavam “iscuitano causo ou oiano im vorta”. “Inté” parecia um domingo de tardinha e que coisa interessante! Numa venda da vila cheirando a pinga e a café de coador, todo mundo se reunia ali, uma viola, uma moda daqui, uma prosa pra acolá. Parece que o tempo parou nas sombras que vão descendo o espigão e o caipira sabe mesmo esticar o dia, jogando baralho, cantando, proseando ou mesmo calado como aquele caipira mulato do canto (Antonio Chapéu), picando tranqüilo o fumo de corda, sério, atento aos causos, caipira é homem de respeito. Outro “cascando” laranja, “assuntando” com o “zóio” as provocações do sobrinho (Bruno Agulhari) da cidade (mai o que cê tá fazeno aqui?), cujo “objeto de estudo” para faculdade é o caipira, “óia esse daqui, parece de cera, meu!”. Juca Morera (Márcio Abegão), sabe se desvencilhar de ardis intelectuais, “faiz o cê memo, ô,ô cê sabe fazê!”, com a naturalidade de seus gestuais caipiras. “Saci...exiiste...passô um aqui agorinha”. Juca Morera mostra com sua eloqüência o pavor que um saci causa aos animais domésticos, galinhas e cavalos. Admira-se o jovem que saci, "com necessidade especial”, anda saltando com uma perna só, assusta e monta os cavalos pela noite afora e ainda faz trança na crina deles. O sobrinho pede uma imitação de passarinho ao tio e começam os trinados e assobios à imitação de aves, sapos e grilos, até o caipira mulato e sisudo afina a voz para imitar galinha d’angola. Esse caipira mulato é mais misterioso, desconfiado, mas quando pega na viola canta apaixonado. Cornélio não o perderia por nada. Os poemas de Cornélio declamados e cantados com expressão dramática e por vezes, despercebida a um leitor apressado.
Se não pode achegar-se à amada (Maria Trevisan), cheia de recatos, segue-a respeitosamente pela igreja, senta onde sentou, cheira o seu cheiro e deixa-lhe um beijo na fitinha de sua devoção, com amor e fé, tendo ele completado o ato de amor idílico, à espreita dela de “zóio espichado” em sua performance como dança de acasalamento, foge sem mais. Há uma promessa?
Jogo de baralho. Atenção em volta da mesa. Gestos, truques, tossidas, cuspidas perigosas – é bom os curiosos saírem de lado! No final do jogo, cada um canta a vitória com seu mote, mas um vai batendo outro com sua carta, até o ganhador final.
Os causos, se mentiras são, não prejudicam a ninguém. Um caipira (Charles Mariano) “viu” oito irara, caça raríssima...outro caipira (Barbosa Neto) contesta. O macaco do circo subiu no poste e trouxe o povo para fora. Como fazê-lo descer para o circo? Macaco gosta de quê, compadre? O cururu se inicia entre uma pinga e outra, o dono da venda acompanha e no refrão “oilarilarilarai” o cantador vai pensando na resposta inusitada e em rima, que a platéia ovaciona.
A tempestade na escuridão assusta na noite de “guardamento de defunto”. Os causos de medo arrepiam. Os entes folclóricos assumem vida própria nos olhos, caretas e pronúncias desses brasileiros, à luz de velas.
A peça é um espetáculo numa estripulia musical (Jonathas Beck) ao longo da apresentação, que repercute nas tardes quentes e em noites enluaradas ou tenebrosas do sertão de casebres e da venda à beira da estrada, “onde os vi e me vi”. (Direção de Luis Carlos Laranjeiras)

“Merda" Merda”!

Contentava-me em sentar-me nos primeiros lugares sem pagar ingresso. Em princípio apaixonei-me pelas personagens, pelo figurino e pelos gestos tão precisos e preciosos de cada um, quis conhecê-los, como muitos expectadores. Comecei a acompanhar o grupo e a assistir a todas as apresentações, sempre esperando a aparição das personagens com suas falas. Por vezes, a personagem deixava transparecer a consciência além de si e via um detalhe, percebera pelos olhos do ator um fato diferente, fizera uma homenagem ou brincadeira numa palavra. Começava a peça, eu não conhecia mais os atores. Com dadivosa generosidade emprestavam os olhos, as lágrimas e o corpo à sua personagem, numa relação íntima. Quase nem à minha esposa atriz conseguia ver dentro da constituição de sua personagem, ainda que a procurasse no canto dos seus olhos. O público e ela um devoto comprometido com a festa e seus festeiros. Meu coração iria checar depois se me amava ainda.
Outra apresentação na agenda. Ônibus, cenário e figurino pela estrada. Lá vão pela estrada, as cenas repassadas, as cantorias da peça. Os artistas, descontraídos, carregam as roupas das suas personagens, felizes em reencontrá-las. A arte é vida transformada. Lá uma cidadezinha pequena, um pequeno teatro. Descer e arrumar o cenário, adereços e figurinos.
Chamaram-me para “dar uma força”. Descasque as espigas de milho para a cena da família, põe a cana e o facão para a cena dos cortadores de cana, passe o terno do Quin e a roupa do devoto, puxa o barco do Nerso daí, joga os chapéus naquele canto. Fulano já chegou? Não, ele vem de carona, o Diretor vai vir?
Tudo ali misturado, atores, cenário, roupas, figurinos, atores, rotunda enorme movida por roldanas, sombras, personagens e eu lá e cá, às voltas com aquele ambiente de um vai e vem. Um sorriso, uma piada, um oi de alguém que já me vira e conhecia a minha atriz-esposa, outro que me confundia com outrem. O cenário já posto em teste de foco e de luz vermelha, verde, âmbar, noite, dia, provindas de refletores enormes de luz de chão, cruzada, de fundo, de pino. Ia sair no final para aguardar o espetáculo na platéia, seguraram-me, deram-me um boné, uma roupa branca para figurante na procissão do divino. Não era ator, nem tinha formação alguma nessa arte, mas para figurante servia.
Na hora da apresentação todo o caos da coxia se arrumou como que por encanto, num mutirão sem líder. Os atores já incorporaram as personagens literalmente, debaixo camadas de roupas, da primeira a última personagem interpretada. Os atores acorrem para junto do círculo, misturam-se às outras mãos que balançam para cima e para baixo, no centro, numa onda uníssona e crescente de entusiasmo e energia para espantar qualquer azar:...vai, vai, vai, úi, úi, úi... ãn...ãn...Andaime!!! As palavras são como que apenas sons, uma glossolalia, como o cumprimento que só se percebe o sentido quando se recebe: Merda. Merda?! Nada menos que isso que ouvi daquelas caras e bocas sorridentes e alegres como crianças, que me abraçavam e apertavam-me, dali fluindo intenso amor e gratuidade.
Sai de marinheiro, após a “merda”. Ao lado de minha esposa caracterizada de homem e – que escândalo! – beijou-me. Fiquei vermelho sem maquiagem. Nem percebera que a porta não se abrira ainda. Saímos para a rua, os festeiros soltaram os rojões e fomos aos pares cantando “pá agradecê o divino”. Cantei, cantei e imitei os cantadores e a mim mesmo e enfim, descobri que era um caipira de verdade e de mentira. Na entrada do teatro o público, adultos, crianças, mulheres, homens, idosos, olhares de simpatia, carinho, solidariedade, incredulidade e até algum deboche pela nossa “verdade dramática”. Seguimos a bandeira do divino, acenando ao público de caras e carrancas que foram se soltando e percebendo o foco do evento, uma realidade interior pela representação exterior que acaba por consumir esta. Entramos cantando até o palco e o povo nos seguia, assentando-se nas poltronas. No palco, as músicas e danças como a Catira e a Congada; a festa, alguns tropeços de encenação imperceptíveis ao público, tudo é festa, em meio à pipoca e à euforia dos cantadores e devotos, que cantam com devoção e alegria, sem se importarem pela métrica das partituras, caipiras que são, cantam de cor, como os pássaros em poleiros.
Beijei a bandeira do divino e em meio à festa, fui o primeiro a me retirar. O festeiro ia dormir? Ele sim, eu entrei pela coxia, troquei de roupa e fiquei aguardando a peça de lá, olhando de soslaio a reação do público que não me via. Lá fiquei “dando uma força” e tentando não atrapalhar o trânsito dos atores, a troca das personagens, nas penumbras do transitório, “a fuga” por trás da rotunda, a entrada pelo lado oposto do mesmo ator e de outra personagem. Era como adão vendo a criação de um mundo, do meu próprio e do público, só que estava vendo por dentro. A montagem do céu, da terra e do rio que engolira pescadores e ia devorar aos olhos da platéia o adolescente Denirso.
O jovem saiu na luz, caracterizado, tentando acender um cigarro roubado de seu pai, no luar da mata puxava o fogo como vaga-lume para acender o objeto de sua transgressão. O cigarro de “paia”. Assim feito, sentou-se à “margem do rio” (platéia) e deu algumas baforadas e tossidas. Depois de alguns segundos de olhar para o nada em meio à platéia, começou a Fala dele. Na noite enluarada, ouvem-se os cantar de grilos, pássaros e animais da mata e dois cachorros que ladram para ele, o interrompem e o atormentam. Na coxia, vejo o mundo representativo dessa fauna toda. Imitações características, cada um faz um animal bem a seu jeito. Têm de se espremer, arregalar os olhos, se contorcer, forçar o abdômen, para fazer o que os animais fazem naturalmente; mas os atores se superam nesses sons onomatopaicos, numa consciência humana que se aproxima da cósmica. Percebo-os num estado alterado de consciência. É divertido e cômico aquelas “vozes” imitando galinhas soltas no terreiro, patos, macacos, corujas escondidas sobre o toco, cachorros ameaçadores e o bom burro que assopra na cocheira, todos com personalidade própria: “imito a galinha da minha mãe”, “eu tinha um cachorro que latia assim”, “lá no sítio a coruja fazia assim, em cima do mourão, eu gosto de coruja”, “o burro é uma gracinha”.
Em meio às penumbras da coxia, quase que podia ver os ditos animais, aos quais muitas vezes ouvira da platéia daquela “noite no mato”.
(“The End”)