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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

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...Santidade, estão todos mortos

Uma leitura do filme A missão

O embaixador de Portugal, enquanto acaricia uma espécie de nossa fauna, calmo, balança os ombros e diz com ironia ao bispo que “a vida é assim, o que fazer?”. É a política. Se todos das missões, velhos, crianças, mulheres e homens, foram mortos, o que fazer? “Não. A vida não é assim, nós que a fizemos assim”, diz o prelado. Dirige-se a sua sala e dita ao secretario uma missiva ao Papa. “....Santidade, estão todos mortos..., melhor, escreva: estão vivos, nós é que estamos mortos”.
O violento chama de selvagem a vítima que grita pela sua impiedade e zomba do direito de espernear e sangrar. Desconhece a própria impiedade que volta contra si, como o mercenário Mendonza que foi rejeitado pelo amor da bela dama, que talvez não quisesse conluio com aquele tipo de covarde. É incapaz de amar, sua impiedade o fez duro, insípido. Por certo, porque escolheu outro, que apesar de irmão do mercenário, é seu antípoda.
Mendonza promete à amada não matar o irmão. Sai de sua boca uma negativa perdida, sem saber o que fazer. Está só, sentindo-se traído duplamente. Sabia que mataria. É seu código. Outra vez morre sem amor o homem e aparece o mercenário. Capitão Mendonza. Não suporta o ciúme e a humilhação. Os ressentimentos vêm como um rastilho de pólvora e mata o adversário, em duelo. Apunhalado morre o oponente seu irmão, sem saber reagir a força. Matar em duelo não é crime, mas Mendonza não pode mais viver como antes. O mundo está fervilhando e o caçador de nativos aposentou-se a mendicância. Isola-se, desprezando comida e água.
O padre Gabriel encontra o mercenário, amuado num canto. Ressuscita sua ira. O mercenário que lhe atacava a missão decaído, não muito diferente de suas vitimas – usou o caminho errado, porque um homem prostrado assim é para se rir mesmo. Não há mais vida, diz o próprio; mas se houvesse, tentaria a remissão de seus atos, provoca o sacerdote. Volta para a missão. Carregando como um jegue de carga todos os seus pertences e seus pecados. O mercenário voltou só, indefeso. Os índios podem matá-lo também agora! Seria um alivio ao homem, mercenário de si mesmo. Podem. Talvez queiram. Não o fazem, cortam as amarras da bagagem e jogam nas águas o que lhe restou da vida mercenária. Chora como criança; os índios riem e o acolhem.
Os portugueses atacam a missão indefesa. Mendonza pede permissão ao superior para lutar. Padre Gabriel não o permite, mas vai, atendendo aos anseios dos irmãos missioneiros. Padre Gabriel não pega em armas. Para ele se a vida não for por amor, não vale a pena ser vivida, se agarra ao Santíssimo e ao seu sacerdócio, em procissão. Os fogos cruzados sob o comando de um capitão, contrariado, percebe-se, cumpre ordens e mutila-se, um mercenário fardado. Vão matando crianças, velhos e mulheres, profanando a vida e a natureza. Gabriel segue paramentado em procissão levando o santíssimo, muitos vão caindo ao seu lado sob artilharia, mas ele ainda segue, não chegou a sua hora. Mendonza é alvejado antes, perto dali. Agoniza assistindo a procissão e Gabriel com o Santíssimo. Um balaço acerta o peito de Gabriel, que rodopia e cai morto. Deus não deu nem agonia ao pai espiritual do ex-mercenário, o levou da vista deste. Está tudo acabado, dirá o descrente. Os olhos de Mendonza se fecham por não poder ver, revirados no olhar da morte, após a queda de Gabriel atingido. O Santíssimo é juntado do chão e outros índios, seminus, ainda vivos, o tomam em procissão até a morte, conscientes, alvejados sucessivamente pelos selvagens brancos, enlouquecidos. Nós. (...Santidade, todos estão mortos...Estão?!)

domingo, 22 de fevereiro de 2009


Férias no Chalé

Era um dia de férias, frio. O casal resolveu descansar num conjunto de chalés, todos muito iguais e belos, num clube aconchegante à beira da estrada. Esperavam algum sol, mas após a chuva e garoas, só veio vento e um frio inóspito. O jeito foi se acalentar na cama com uns livros ou um cochilo, no silêncio entrecortado por rajadas de vento.
O rapaz logo se entreteve com a leitura, a mulher se encorujou num canto, coberta por grossa manta. Lá fora os passeios e atrações do clube estavam comprometidas pelo mau tempo e retração do casal. A moça de um lado, ele de outro com os olhos na Metamorfose* de Kafka. Ela se rendeu ao sono e ele ao pesadelo do estranho monstro de Kafka. Tinha de despertar dali, ver as atrações, logo seria a hora do almoço, o remédio para febre maculosa, que tomava devido a exposição a picadas por micuim, revolvia o estomago. Ela deitada revirava como um carrapato estrela e tentava lhe pegar as pernas frias, com dedos duros a denunciar o rigor do frio inóspito.
Pôs o livro de lado. Por mais atraente a leitura, não tinha medo de monstros marrons com perninhas, mas de carrapato e micuim. O que fazer? Pegar um café quente para a esposa sonolenta. Foi.
No restaurante vazio foi servido. Trouxe a xícara com cuidado e esmero aquecendo as mãos nela. Quase a derrubou ao tropeçar nas pedras entre gramas, estava sem os óculos de leitura. Conhecia o percurso até o seu chalé. Abriu a porta, entrou. A mulher ainda dormia na mesma posição. Anunciou o cafezinho: Eta, cafezinho bom, hum!...A mulher resmungou como uma estranha e já dormira de novo. Que sono pesado!
Sentou-se na cama. Não achou os óculos sobre o criado-mudo. Ela devia ter feito a sua costumeira arrumação no quarto, enquanto fora ao restaurante. Era neurótica por organização. Devia saber que não enxergava bem sem aqueles óculos! Ficou a pensar. Deitou-se com ela e cochichou algumas palavras de amor ao seu ouvido. Ela sorria com as cócegas de seus dedos acariciando o seu lóbulo. Acordou, abraçou-o forte e lhe deu um beijo como nunca houvera dado.
Ante às condições de frio e vento lá fora, deixou-se ficar com ela na cama, como dois casadinhos. A porta ficou entreaberta quando ele entrou e vinha um vento frio de congelar orelhas. Incomodado, levantou-se e foi fechá-la. Qual foi o susto, quando viu na sala um estranho no sofá. Era um associado, mas ali? Foi logo dizendo:
- O senhor se enganou de chalé, amigo! – e o estranho lhe respondeu, bem liberal:
- Não. É o senhor que se enganou de esposa. Essa aí é minha, nós nos casamos ontem.

*A Metamorfose – Obra Literária de Franz Kafka

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

A Cigarra e a Formiga

– Por uma nova fábula -

Para onde foram as cigarras? O seu cantar se ouvia da sala de aula. Um guizo divino no entardecer. Um cantar para o sol, um zunido que ninguém cala. Do tronco cantam a sós ou em grupo. Fabulosas. Viram-se desengonçadas no tronco, para a esquerda e direita e levantam as ancas para cantar. Uma coreografia? Uma dança antes de começar? Começam e param, por vezes, como que afinando e vão num crescendo até conquistar os horizontes com um fôlego fenomenal.
Cantam, enquanto as formigas passam em fila, carreando folhas verdes para o formigueiro, sem dizer um pio. Andam em frente e só se comunicam entre si. Se algum animal ou homem lhe obstruir o caminho, picam, desviam, fazem novas trilhas. São previdentes, armazenam alimento para o inverno. Já as cigarras vivem somente em seu tronco e pelo tempo que Deus lhes dá, as formigas pensam que o seu trabalho lhes dará vida longa, mas não sabem cantar...
Intervalo. Com um graveto a professorinha revolvia as folhas no chão. Um vento invernal soprava, as folhas verdes foram ceifadas pelas formigas. A trilha delas pelo chão escondida sob a folhagem ressequida levavam a vários formigueiros. Agora só alguns troncos despidos permanecem clamando aos céus. A moça procurava algo no chão, absorta, até que parou com as duas mãos no rosto, não se importando com a fina garoa sobre si, no oceano dos sentimentos líquidos. A alma feminina que chora por aquelas cascas, que caiam insepultas, como que atiradas sem espírito. Cigarras.
Bosque de inverno. Cessou ali o guizo das cigarras. Ia chegando o frio. Sob as folhas secas viam-se alguns insetos variados, como formigas, a transitar numa trilha escondida, enquanto as cigarras silenciaram nos troncos. Um banco de madeira velho, curtido, de onde se vê o cenário abatido pelo vento úmido. Farfalham a esmo as folhas secas, sem viço, mortas, amareladas cobrem o solo, num tapete multicor a espera de outras do alto que se ajuntam no chão, cheirando a pessegueiro velho. Somente ouvem-se breves silvos, tímidos, de algum pássaro solitário, em despedida, que se vai rápido, fugindo do frio inóspito, pelas alturas lúgubres dos céus de inverno, some. Silêncio.
Debaixo dessa realidade bucólica, sob a terra a vida continua, seres habitam, além dos olhos do observador. Lá como o bosque de La Fontaine. Sob folhas velhas, um jardineiro atento verá uma trilha de formigas, uma linha sinuosa em desuso, esquecida, um caminho abandonado. Já se recolheram junto à panela aos pés da rainha. A cigarra cansou, já não canta, esgotaram-se suas forças, foi se agarrando sem fôlego na casca da árvore. Exaurida, vai cair como as outras, como num salto.
Por fim, a cigarra desceu da árvore, com dificuldade, com fome e sede. Caminhou pela trilha vazia até o formigueiro. Reconheceu as formigas que passavam todas as manhãs sob sua árvore com folhas às costas, admirava-as. Ainda na porta a formiga deu-lhe um agasalho e um frutinho. Depois que comeu e bebeu, a rainha das formigas quis vê-la. Abraçaram-se. Trocaram protocolos. A formiga secretária trouxe um contrato para que a cigarra pudesse assinar. Ficaria desde que, no verão cantasse para a rainha botar seus ovos com mais alegria. O inseto não aceitou o emprego, voltou sem assinar o papel e preferiu morrer contando no bosque, nas velhas árvores de uma escola rural, a ser escravo das formigas daninhas.

Ofereço aos professores e a minha professorinha que fazem trabalho de formiguinhas e tem de ter o fôlego de cigarras.

sábado, 14 de fevereiro de 2009


“Um pequeno tombo já os punha a nocaute! Nós, crianças, não percebíamos.”

A máscara do Zorro

A polícia montada de Los Angeles, EUA, na tarde de ontem, prendeu um homem que se fazia passar por surdo-mudo. De carroça, o mímico carregava o figurino do rebelde Zorro. O rebelde ia voltar a agir, pensaram. O mágico amador sumiu em meio do caminho e sobraram somente alguns vestígios, uma máscara e um bilhete para Disneylândia.
Na época ninguém desconfiava da identidade do Zorro. Um fidalgo que estudava esgrima na Espanha. Um Quixote que se deu bem no novo mundo a custa dum criado e dum pai rico. Eram dois, Diego, que tinha o dom da esgrima e o alter ego surdo mudo, ouvinte, mímico, mágico, roupeiro e cozinheiro, Bernardo. Os inimigos eram homens maus, todos de bigodes e meio parecidos com Diego de La Vega. Com cargos de comandantes e generais faziam o mal por ambição, oprimiam o povo. A justiça estava nas mãos débeis de um sargento gordo, ingênuo e ébrio e nas do justiceiro noturno. O povo eram os camponeses, servidores das estâncias e alguns índios que restaram por ali.
Descobriram que na casa de um tal Alessandro se tramava política. O dito surdo-mudo usava passagens secretas por trás de guarda-roupas, cristaleiras e outros móveis, para passar de um anexo a outro da residência e lá escutar os planos dos inimigos, em cujos ouvidos sortudos sempre se faziam ouvir. Desconfiava-se que o sargento gordo do povoado dava cobertura ao bandido por alguns copos de vinho e por boa conversa. O cabo que servia com o dito comandante via-o sempre na taberna a beber. Há indícios de que o Zorro queria conquistar a Califórnia e depois o mundo moderno, como defensor dos pobres e oprimidos.
Esgueirava-se por trás de uma ramagem, onde treinava o seu animal, arredio a estranhos. Um esconderijo bem camuflado e de onde surgia sobre a montanha em seu cavalo negro, empinando, empunhando a espada a tocar o céu e a fazer descer raios. Descia à noite sobre o vilarejo para abrir prisões e marcar a grafiteiro o seu Z por todo o canto. Os adversários não morriam pelas suas mãos. Não assustava as crianças! Quando morriam era por alguma queda ou acidente que causavam a si mesmos. Zorro limitava-se a marcar-lhes o destino. Acordavam com o Z na testa ou nos fundilhos.
Fazia a maior bagunça nas hostes inimigas. Subia sobre os telhados do quartel, escapando de tiros dos soldados, escalava muros e paredes, enfrentava vários soldados ao mesmo tempo, derrubando-os num só golpe – é a força do mito. Um pequeno tombo já os punha a nocaute! Nós, crianças, não percebíamos. No chão a espada dele valia por dezenas das dos soldados e depois, subia o muro novamente, desviando de algum eventual tiro, pelo alerta inadvertido de alguma ordem de fogo de um sargento atrapalhado ou de um comandante colérico. Sempre escapava. No alto, a um assobio que só o seu cavalo ouvia, a montaria se postava do lado do muro alto e branco do quartel, conforme o combinado: espreitar o momento oportuno numas das ruelas sombrias, com as orelhas em pé, a ordem de comando, o assobio. O cavaleiro, num salto de pernas abertas, cai das alturas sobre a cela novinha e vai embora zombando dos adversários que os acompanhava pelas pradarias, numa corrida de cancha reta, onde só o mascarado sai vencedor. O cavalo do Zorro corre mais, é mais bonito, elegante e por fim, quando cansa da brincadeira a despedida, fazendo a corte com a espada: Adios, senõres!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009


Eta, cavalo bão! – Publicada na tribuna Piracicabana em 19/12/08

Um cavalo bom de tração e montaria. O bater de patas na cocheira, o olhar de mansidão daqueles olhos enormes e redondos, mastigando ração. Conhecia o dono. De manhã, após um assobio ouvia-se o bater de cascos pela invernada. Parava imponente, mas abaixava humilde a cabeça ao laço do destino. Puxar carroça ao mercado. O cavalo fugira algumas vezes e logo fora achado por vizinhos. Ia comendo o capim da beirada do sitio e logo passava a cerca sem se dar conta da demarcação humana. Vinha humilde e com ar de inocente pela rédea de algum tropeiro, separando dos outros perdidos em busca da liberdade.
Quando morreu o sultão, o dono não quis comprar cavalo ali, porque os ciganos tinham fama de pintar os animais com carvão e vendê-los à noite. Não conseguia achar outro animal igual ao seu. Cavalo de saudosa memória. Bonito, imponente, forte, com uma marca branca na testa, sinal de sorte. Virava-se com um burro mesmo, que empinava arredio na carroça e fazia o cocheiro valer-se do chicote, quase em desuso, devido à obediência do cavalo de outrora. Era um burro empacador e nem o látego o tirava do lugar. O dono lhe oferecia alface, cenoura e irado, acabava lhe dando o chicote no lombo mesmo, sem nenhum resultado.
Saiu à procura de outro animal numa montaria emprestada. Passou pelos ciganos e foi em frente. Chegou a um sítio de um caboclo. Foi abrindo a porteira sem desmontar. Antes que passasse no caminho de serventia, um homem apareceu acompanhado de um menino armado de espingarda. Teve de parar ali mesmo sob a mira inocente de um mau atirador. O pai veio ter com ele. Para seguir tinha de pedir permissão, aquilo era propriedade privada. O menino de chapéu atolado na cabeça mirava o estranho e perguntava ao pai se já podia atirar, como quem pratica tiro ao alvo. O estranho se escondia na sombra do mourão e se explicava até que o pai mandou o menino baixar a arma.
Entrou no sitio e o dono da propriedade lhe foi gentil, dizendo que se estava a negócios não precisava ir mais longe. Tinha ali mesmo um cavalo de primeira. Foi negociando e enredando o estranho, o filho o acompanhava com a arma abaixada. Uma conversa simpática foi tomando conta dos dois. As lembranças do cavalo morto, suas façanhas, os préstimos dele. O velhaco serviu um café ao visitante ameaçado, fê-lo sentir em casa e já à tardinha, escurecendo, foi com ele para cocheira junto com o menino à socapa. Ali estava o cavalo. Na verdade, um pangaré cansado e velho, à sombra da cocheira e visto à silhueta. Mas a caboclo ia dizendo que era bonito, altivo. Igual ao seu sultão. Olha os dentes, a pelagem, o rabo, as patas. O trote dele é belíssimo, forte e marchado, as orelhas bem formadas, era um cavalo de filme mesmo. Puxava toras, carroções de milho, montaria para mulher e com pouca comida, com pouca água, tinha a resistência de um camelo.
O filho seguia a conversa com os olhos pra lá e pra cá, já sem o ímpeto do primeiro alvo, admirado com as palavras do pai. O dono do Sultão, ainda sentido pela morte recente de seu cavalo, com pouco dinheiro, ia transferindo o seu afeto pelo novo animal. Aquele quadrúpede ali mexia com o seu coração. Eta, cavalo bão! Sentiu. O negócio estava quase fechado, mas o menino se interpôs: - Paiê, se o cavalo é bão ansim, vamo ficá cum ele, ué!
Da contribuição verbal de Alessio Quartarollo

O coroinha e o estilingue

O brinquedo de menino peralta era o estilingue. Joãozinho mirava o alvo e pá! Caía andorinha, tiziu, o que tivesse asas derrubava. Só não acertava em avião, devido à altitude e em anjo de igreja, que era um alvo parado. Até no cachimbo do avô já lançara um projétil. O velho correu atrás do neto, mas, hilário, perdoou o depositário de seus genes, também fora peralta em criança.
Apesar de todas as malcriações, era o coroinha, sob protesto de uns e outros o padre mantinha o herói das travessuras a servir lhe no ministério sagrado.
O padre bonachão ouvia o assunto, sério na frente dos reclamantes, mas ao adentrar a sacristia ria à só. Não tivera tempo de ser menino, não teve tempo de fazer peraltices; na idade da razão, os pais lhe colocaram no seminário católico. A vocação veio depois do fogo das tentações, sem mulher e sem filhos, velho, tornou-se o que era. Padre de vila.
O padre solene, olhando para o povo, de mãos juntas, não perdia os olhos do acólito inapto. Se fosse pegar a água antes do vinho, comunicava-se em código e por caretas que pegasse o vinho. O povo não percebia. As pessoas, em estado de graça vinham mansas e puras de coração, viam pelos olhos da fé o corpo, o sangue, a alma e a divindade de Cristo e o peralta com pintas de sol, com olhar de soslaio, de quem reconhecia suas vítimas: a mulher do barbeiro de quem quebrou a vidraça, a moça que acertou o traseiro e outros tantos casos, perdoados em confissão particular.
As coisas iam bem até que quis acertar uma andorinha em vôo dentro da Igreja e quebrou um vitral. Ali era a casa de Deus, esbravejou o padre ao saber pelo sacristão. Ia chover dentro e até vir o pedreiro... Ia ficar caro. O povo que mantinha o templo com dízimo ia cobrar dele a falta de cuidado com o coroinha, que mantinha aos serviços do altar. Resolveu tomar uma medida extrema, corrigir o garoto e aplacar a ira da comunidade. Tomou o estilingue de Joãzinho. O padre fez-se de insensível, reteve a arma consigo e para o menino não pegar colocou-o no bolso, por baixo da batina. Bem seguro.
O menino seguia bem, acabaram-se as peraltices e o padre estava feliz, resignado, mas mantinha o estilingue ali, no bolso debaixo da batina, consigo. Numas das missas dominicais o bispo, que chegara ao meio da cerimônia, participava do primeiro banco, cheio de fé e dizendo as orações conjuntamente com o padre, de cor. Fraco de oratória, sem manifestar seu pensamento cotidiano e sem alvejar os corações do povo, tinha medo até de falar. O menino, ao lado, suspirava desatento. Era a hora de servir o vinho. Então fez os costumeiros gestos com as mãos sob a mesa, mas o acólito não o servia. Manteve os olhos enlevados e fingiu uma dispersão angelical até que abaixou, beijou o altar e sussurrou: “...o vinho, João...João, o vinho”. E Joãzinho disse: “dá o meu estilingue, seu padre!”. “O vinho, pelo amor de Deus!”. “Dá meu estilingue agora!”. “Depois. Aqui não!”, retrucou o padre, todo paramentado. “Então não tem vinho, seu padre”. Assustado, na hora mais solene da missa, pediu que todos meditassem sobre aquele mistério e fechassem os olhos. Quando todos assim fizeram, virou-se num aperto pra cá e pra lá e levantando toda a indumentária litúrgica, puxou o dito estilingue e passou ao coroinha.


Texto e enredos criados da contribuição verbal de Alessio Quartarollo, meu pai.

Seu Vizinho

Seu Vizinho, era como o chamavam. Logo associei com a brincadeira de infância, nomear os dedos das mãos: seu mindinho, seu vizinho, pai de todos, fura bolo, mata piolhos... Vizinho era morador contíguo ao meu jardim e a quem nunca lhe perguntaram o nome, talvez por ser sisudo quando não quer conversa. Era de um bom dia gutural e seco, olhando para o outro lado. Não esperava assunto, já ia andando.
Fumava, via-se em meio a nevoa, enquanto cortava a grama. Ia de lá para cá com a máquina barulhenta a retaliar gramíneas e pedras pela trilha verde de cheiro adocicado. Tossia empunhando a máquina com a mão direita incansável, enquanto fumava com a esquerda esquecida, como se a direita não soubesse o que a esquerda fazia. O Rom-rom da máquina acordava a redondeza toda e podiam-se ouvir bons-dias contrariados pela rua, mas era assim. Ele ditava a hora de se acordar e de responder aos cumprimentos. Se alguém da família lhe alertasse, dizia que já era tarde.
A máquina ia e vinha no imenso jardim, colhendo o excesso de mato, grama e as flores da esposa que olhava da porta, sonolenta e preocupada. O marido não se emendava mesmo! Seu jardim florido ceifado junto com o mato e como se diz, o trigo e o joio, até que o motor e o ruído pararam. Alivio. Não. Porque numa das idas e vindas com o cortador, cortou o próprio fio elétrico da máquina. Sem se dar por vencido, emendou-o com fita isolante, sem desligar a energia e continuou o vrum ensurdecedor e novas paradas, por cortar o fio novamente. Agachava fazia o reparo com as duas mãos açodadamente, enquanto o cigarro queimava na boca. Foi cortando, cortando, até que passou com a máquina sobre um cano plástico, encharcando o quintal. Assim mesmo recusou ajuda, deixou o cano lá até que o encanador fechou o registro, a chamado da esposa.
O tempo é outra coisa que o Seu Vizinho o faz de maneira própria. Cinco minutos para tudo. O seu carro está obstruindo a saída e entrada da garagem do domicilio alheio, o tira em cinco minutos, seus cinco minutos, contados vagarosamente. Seus assuntos sempre são prioritários. Quando vem ainda quer apertar a mão aflita e um sorriso de “pra que pressa?”.
Ao conversar na calçada, na frente dos transeuntes para distrair o mal entendido, argumenta continuamente, falando de si, olhando para dentro de um mundo que só ele acredita. É um homem arrojado, bem sucedido, um boa-vida até. Gosta do que é bom. Bebe o seu uísque caro e fuma o seu cigarro com filtro. Compra o que lhe aprouver, de um lugar o dinheiro sempre vem. “Alguém tem que me dar”, arremata. Um ar de malandro ingênuo com o que lhe sobrou, bebida e cigarros à noite, nos engodos dos anos. Os brasões da família já foram para o reciclável, mas ele ostenta o nome como se vivesse na Idade Média.
Com o tempo passou a invadir meu jardim, quis até aparar minha grama, consegui evitar, sem ofendê-lo. Adoro borboletas e beija-flores por ali. Já não ligo se estaciona seu carro na frente da minha casa. O faz por pretexto, para conversar, eu sei. Quer repassar todos os “bons” livros que lê, é como se ninguém soubesse daquele enorme tesouro que possui. Li alguns de relance, são boas receitas de como fazer isso e aquilo, mas não ensina o seu Vizinho a conviver com o “seu Mindinho”.

domingo, 1 de fevereiro de 2009


Efeito Espacial

Acordei com muitos latidos e um clarão na janela. O vento de um falso outono revolvia na noite, num vrummm medonho. Mais cadente, um barulho supersônico de algo a deslizar sobre as bananeiras do quintal. Que luar intenso! Acordei minha esposa, admiradora de luares. Estava frio, mas tremia de medo. A árvore vista de nosso leito estava com a copa iluminada por baixo. Por que sentir medo? Afinal era só mais um fenômeno atmosférico. Outono na primavera, frio no verão e estas coisas que qualquer cientista explica muito bem. É o homem que anda mexendo com o planeta e ele estufa. Os latidos dos cachorros eram coisas de algum gato sobre o muro. Ia dormir novamente, mas minha esposa atentou para a estranheza. As árvores se mexiam muito e não ia chover. Aquilo não era normal!
Não me restou alternativa, a não ser sair para o quintal da casa, no relento frio da madrugada, em meios aos latidos e ver aquele fenômeno à porta da minha cozinha. Um objeto luminescente giratório planando sobre o quintal. Lá estava uma nave alienígena. Voltei para dentro e fechei a porta com tranca, com medo, mas fingindo coragem. Era melhor não ter visto, agora tinha de tomar uma posição, voltar lá fora e...sei lá, estabelecer contato, antes que ela o fizesse e de camisola. Já pensaram?! Eu era o homem da casa e fui.
Iria usar o seguinte termo: a primeira diretriz da frota estelar, do seriado Star Trek, de “não-interferência” em outros planetas e quintais. Meu único argumento conhecido. Tive que acalmar o cachorro que ficou atrás, nas minhas canelas, medroso como o dono, a minha esposa olhava da porta me dando coragem e me empurrando com um gesto de “vai”. A nave era pequena demais, uns cinqüenta centímetros. Aquela coisa luminosa e verde girava de atordoar dançarino. Que falta fazia um capitão Kirk, um Picard! Como falar com aqueles homenzinhos?! Sem fasers ou outra arma do século XXIV, ia me socorrer com uma pá de jardim. A abdução estava descartada – pensei - porque eu não caberia naquele veículo minúsculo. Mas num segundo me vi dentro daquela navezinha, em miniatura como meus abdutores, olhando para o telhado da minha casa, com a parabólica e tudo. Senti vertigem. A pá de jardim do meu arsenal de defesa ficou caída, quando me sugaram à nave.
Navezinha fria, eu de pijama listrado e com toca colorida ali, num encontro de protocolo interplanetário, numa negociação futurista. Falava o trivial português, um pouco caipira, que minha mulher entendia pela convivência. Pensei que falassem uma língua meio anfíbia, vulcano, ou outra do seriado Jornadas nas Estrelas. Mas falavam um português “difícil”, como os lusos mesmo. Ofenderam-se com meu linguajar do cruzeiro do sul e minhas alegações sobre invasão de quintal alheio, da “primeira diretriz de não-interferência” e lançaram-me sobre as gramíneas, ainda em miniatura e humilhado e foram para outros quintais do terceiro mundo, covardes! Escalei pelas ramagens do alecrim e passei sob o portão. Meu cachorro parou de latir, veio me cheirar em má hora, se gostasse de mim poderia ter me devorado, não fosse um rato que passeava comigo do outro lado do muro. Jogou-me de costas numa lambida e foi em busca de outra presa de maior estímulo, a caçador. Fiquei dentro de uma casca de banana até o medo passar. Usei a casca como escudo e fui. Passou um grilo na minha frente, que susto! Parecia uma moto em rua principal. Tive de me ocultar de algumas aves notívagas, esgueirando até perto da máquina de lavar, quando um jato de água me jogou no inicio da trajetória, chamando a atenção dos animais domésticos e da coruja que se postara num galho da goiabeira. Minha mulher segurava um chinelo na mão, confundira minha movimentação com uma barata. Espreitava-me. O som miniatura da minha voz se perdia naquele quintal enorme.
Sentia-me num mundo perdido, pré-histórico, em meio àquelas feras soltas ao meu encalço, dentro do meu quintal. Tinha de fazer algo. Minha esposa que espiava da porta, não conseguia me ver mais e se andasse me pisaria. Foi então que, nessa retração à pré-história, descobri um palito de fósforo perdido no chão e com esforço esfreguei-o no cimento e as feras temeram-me. Levantei o palito como uma tocha e fui indo em direção a minha esposa, para que me visse. Confundiu um vaga-lume a barata de antes. Ia chinelar. Mexi logo o palito no ar para fazer um sinal de fumaça, não sabia bem qual, mas saberia que eu era uma vida inteligente afinal. Não deu certo. Ela errou o golpe, visto que chinelava e virava o rosto para não ver, tamanho o asco. Afastei-me, fiquei com muita vontade de lhe queimar os dedões. Que raiva! Mas precisava do palito aceso. Ela cresceu para cima de mim, arrogante e veio em sombra e em pessoa a me sobrepujar. Eu era um rato, uma barata, um vaga-lume, um...monstrinho. Cai no ralo, não sabia nadar, o palito apagou, mas ficou preso. Fui subindo, vendo-a por entre o gradeado, à minha procura. Ia me matar afinal. Não sabia desse seu lado tão pérfido. Ia me matar! Sem nenhum julgamento, sem nenhum motivo! Mas pude ainda observar debaixo a sua excitante figura, esguia e bela sob a camisola. Desistiu por achar-me sem importância. Não estava à sua altura.
Dormi dentro do ralo, segurando no palito de fósforo apagado, no som das gotículas derramadas pelo vento, numa acústica tubular. Sentia-me um rato, quase sentia o vento pelos pêlos das minhas narinas alongadas. Ela voltou, senti-lhe o cheiro agridoce de seu medo. Agora já assumira minha condição selvagem. Os alienígenas que dominassem o mundo, que não era mais meu. Fugiria para outro quintal e dali para outro até achar o meu destino. Ia saindo quando meu cachorro me deu uma patada, rodei no cimento até a porta, fiquei debaixo do salto da minha esposa. Não me viu e parou para dar os carinhos que eram meus ao cachorro. Eu me escondia. O cachorro cheirava, cheirava e pelos carinhos esqueceu da presa. Aproveitei a distração e iniciei a retomada do meu lar, ainda que na pele de um espécime. Fui sorrateiro, esquivei-me pela cozinha. Podia me esconder para comer qualquer migalhice. Após o café, minha esposa pegou a toalha e jogou as migalhas aos pássaros enormes. Não me sobrou nem uma casca de pão seco, em meio àquele perigo de monstros alados. Minguava à fome. Era o último na cadeia alimentar, presa para qualquer passeriforme, pombas, pardais e até mesmo aos tico-ticos. Minha voz era qual um zunido de um besouro.
Minha esposa saía, olhava para o céu e chorava, pensou que eu tinha sido abduzido. Como dizer para ela que eu estava ali, vivendo a vida de um animal qualquer, rejeitado pelos alienígenas pelo meu português ruim. Chorei também, depois de muito tempo. Já não a via, não a olhava, deixava que sua silhueta preenchesse o espaço enorme à luz frágil da cozinha.
Ela era uma caboclinha feliz e eu não sabia o que dizer a quem sempre me conhecera pela convivência, mas era um selvagem pela primeira vez. Pulei sobre uma viola velha e caí dentro do estojo, tentei com minhas patas dedilhar uma moda de viola. Mas era muito ruim como violeiro, deixei me ficar qual vivente anônimo na natureza. Ela triste pegou a viola e tocou uma canção com doçura, saudosa de mim, ou daquilo que eu era, deixando-me beber de suas lágrimas e finalmente me viu dentro da viola e de seu coração. Pulei entre as cordas e comecei a crescer novamente como um príncipe moderno, com meu pijama listrado e minha toca colorida. Se não somos alienígenas, podemos ser alienados dentro de nossa própria realidade.