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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

domingo, 1 de fevereiro de 2009


Efeito Espacial

Acordei com muitos latidos e um clarão na janela. O vento de um falso outono revolvia na noite, num vrummm medonho. Mais cadente, um barulho supersônico de algo a deslizar sobre as bananeiras do quintal. Que luar intenso! Acordei minha esposa, admiradora de luares. Estava frio, mas tremia de medo. A árvore vista de nosso leito estava com a copa iluminada por baixo. Por que sentir medo? Afinal era só mais um fenômeno atmosférico. Outono na primavera, frio no verão e estas coisas que qualquer cientista explica muito bem. É o homem que anda mexendo com o planeta e ele estufa. Os latidos dos cachorros eram coisas de algum gato sobre o muro. Ia dormir novamente, mas minha esposa atentou para a estranheza. As árvores se mexiam muito e não ia chover. Aquilo não era normal!
Não me restou alternativa, a não ser sair para o quintal da casa, no relento frio da madrugada, em meios aos latidos e ver aquele fenômeno à porta da minha cozinha. Um objeto luminescente giratório planando sobre o quintal. Lá estava uma nave alienígena. Voltei para dentro e fechei a porta com tranca, com medo, mas fingindo coragem. Era melhor não ter visto, agora tinha de tomar uma posição, voltar lá fora e...sei lá, estabelecer contato, antes que ela o fizesse e de camisola. Já pensaram?! Eu era o homem da casa e fui.
Iria usar o seguinte termo: a primeira diretriz da frota estelar, do seriado Star Trek, de “não-interferência” em outros planetas e quintais. Meu único argumento conhecido. Tive que acalmar o cachorro que ficou atrás, nas minhas canelas, medroso como o dono, a minha esposa olhava da porta me dando coragem e me empurrando com um gesto de “vai”. A nave era pequena demais, uns cinqüenta centímetros. Aquela coisa luminosa e verde girava de atordoar dançarino. Que falta fazia um capitão Kirk, um Picard! Como falar com aqueles homenzinhos?! Sem fasers ou outra arma do século XXIV, ia me socorrer com uma pá de jardim. A abdução estava descartada – pensei - porque eu não caberia naquele veículo minúsculo. Mas num segundo me vi dentro daquela navezinha, em miniatura como meus abdutores, olhando para o telhado da minha casa, com a parabólica e tudo. Senti vertigem. A pá de jardim do meu arsenal de defesa ficou caída, quando me sugaram à nave.
Navezinha fria, eu de pijama listrado e com toca colorida ali, num encontro de protocolo interplanetário, numa negociação futurista. Falava o trivial português, um pouco caipira, que minha mulher entendia pela convivência. Pensei que falassem uma língua meio anfíbia, vulcano, ou outra do seriado Jornadas nas Estrelas. Mas falavam um português “difícil”, como os lusos mesmo. Ofenderam-se com meu linguajar do cruzeiro do sul e minhas alegações sobre invasão de quintal alheio, da “primeira diretriz de não-interferência” e lançaram-me sobre as gramíneas, ainda em miniatura e humilhado e foram para outros quintais do terceiro mundo, covardes! Escalei pelas ramagens do alecrim e passei sob o portão. Meu cachorro parou de latir, veio me cheirar em má hora, se gostasse de mim poderia ter me devorado, não fosse um rato que passeava comigo do outro lado do muro. Jogou-me de costas numa lambida e foi em busca de outra presa de maior estímulo, a caçador. Fiquei dentro de uma casca de banana até o medo passar. Usei a casca como escudo e fui. Passou um grilo na minha frente, que susto! Parecia uma moto em rua principal. Tive de me ocultar de algumas aves notívagas, esgueirando até perto da máquina de lavar, quando um jato de água me jogou no inicio da trajetória, chamando a atenção dos animais domésticos e da coruja que se postara num galho da goiabeira. Minha mulher segurava um chinelo na mão, confundira minha movimentação com uma barata. Espreitava-me. O som miniatura da minha voz se perdia naquele quintal enorme.
Sentia-me num mundo perdido, pré-histórico, em meio àquelas feras soltas ao meu encalço, dentro do meu quintal. Tinha de fazer algo. Minha esposa que espiava da porta, não conseguia me ver mais e se andasse me pisaria. Foi então que, nessa retração à pré-história, descobri um palito de fósforo perdido no chão e com esforço esfreguei-o no cimento e as feras temeram-me. Levantei o palito como uma tocha e fui indo em direção a minha esposa, para que me visse. Confundiu um vaga-lume a barata de antes. Ia chinelar. Mexi logo o palito no ar para fazer um sinal de fumaça, não sabia bem qual, mas saberia que eu era uma vida inteligente afinal. Não deu certo. Ela errou o golpe, visto que chinelava e virava o rosto para não ver, tamanho o asco. Afastei-me, fiquei com muita vontade de lhe queimar os dedões. Que raiva! Mas precisava do palito aceso. Ela cresceu para cima de mim, arrogante e veio em sombra e em pessoa a me sobrepujar. Eu era um rato, uma barata, um vaga-lume, um...monstrinho. Cai no ralo, não sabia nadar, o palito apagou, mas ficou preso. Fui subindo, vendo-a por entre o gradeado, à minha procura. Ia me matar afinal. Não sabia desse seu lado tão pérfido. Ia me matar! Sem nenhum julgamento, sem nenhum motivo! Mas pude ainda observar debaixo a sua excitante figura, esguia e bela sob a camisola. Desistiu por achar-me sem importância. Não estava à sua altura.
Dormi dentro do ralo, segurando no palito de fósforo apagado, no som das gotículas derramadas pelo vento, numa acústica tubular. Sentia-me um rato, quase sentia o vento pelos pêlos das minhas narinas alongadas. Ela voltou, senti-lhe o cheiro agridoce de seu medo. Agora já assumira minha condição selvagem. Os alienígenas que dominassem o mundo, que não era mais meu. Fugiria para outro quintal e dali para outro até achar o meu destino. Ia saindo quando meu cachorro me deu uma patada, rodei no cimento até a porta, fiquei debaixo do salto da minha esposa. Não me viu e parou para dar os carinhos que eram meus ao cachorro. Eu me escondia. O cachorro cheirava, cheirava e pelos carinhos esqueceu da presa. Aproveitei a distração e iniciei a retomada do meu lar, ainda que na pele de um espécime. Fui sorrateiro, esquivei-me pela cozinha. Podia me esconder para comer qualquer migalhice. Após o café, minha esposa pegou a toalha e jogou as migalhas aos pássaros enormes. Não me sobrou nem uma casca de pão seco, em meio àquele perigo de monstros alados. Minguava à fome. Era o último na cadeia alimentar, presa para qualquer passeriforme, pombas, pardais e até mesmo aos tico-ticos. Minha voz era qual um zunido de um besouro.
Minha esposa saía, olhava para o céu e chorava, pensou que eu tinha sido abduzido. Como dizer para ela que eu estava ali, vivendo a vida de um animal qualquer, rejeitado pelos alienígenas pelo meu português ruim. Chorei também, depois de muito tempo. Já não a via, não a olhava, deixava que sua silhueta preenchesse o espaço enorme à luz frágil da cozinha.
Ela era uma caboclinha feliz e eu não sabia o que dizer a quem sempre me conhecera pela convivência, mas era um selvagem pela primeira vez. Pulei sobre uma viola velha e caí dentro do estojo, tentei com minhas patas dedilhar uma moda de viola. Mas era muito ruim como violeiro, deixei me ficar qual vivente anônimo na natureza. Ela triste pegou a viola e tocou uma canção com doçura, saudosa de mim, ou daquilo que eu era, deixando-me beber de suas lágrimas e finalmente me viu dentro da viola e de seu coração. Pulei entre as cordas e comecei a crescer novamente como um príncipe moderno, com meu pijama listrado e minha toca colorida. Se não somos alienígenas, podemos ser alienados dentro de nossa própria realidade.

2 comentários:

  1. Excelente as mudanças que você fez no final - mais detalhadas- Amei amore mio .

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  2. Camiloooo, adorei esse texto!!!, senti um gosto de Metamorfose com Querida encolhi as crianças em tons "Spilbergianos"... Quero que saiba, você já faz parte da lista dos meus cronistas preferidos. Abraço, meu querido. Ahhhh, tem mais: estive esses dias com sua doce esposa. Adoro a leveza estampada na presença dela que traz invariavelmente uma criança apaixonante. Você é um homem "de sorte" em tê-la, da mesma forma que ela é uma mulher "de sorte" em tê-lo.

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