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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sábado, 26 de outubro de 2013

Já pensou em ser artista? 
O artista ensaia à exaustão a mesma cena até que o sutil torne-se espontâneo, que o diretor e ator vejam-se no plano espiritual do palco, sobre o tablado atrás de um pano de sonhos. Tanto trabalho em ser artista que ele/ela quer desistir muitas vezes, mas nunca, nunca desiste... de viver. Não pode abortar a vida de seu ventre, a personagem pode ser dada em adoção a outro ator/atriz, mas nunca, nem em petição de miséria vai matá-la em seu jeito de ser. É algo de seu.
Queria ter a força de um clown, de um palhaço, a força espiritual e divina deles(as). Não há quem os desestimule, quem os vença em seu ânimo, mesmo sob o achaque o palhaço é digno em seu viver humano e pode dizer o que os status quo nega peremptoriamente por regras sociais, por vezes, quase sob ditadura de uma estética convencional. O palhaço diz coisas sérias, que em certas situações ninguém aceitaria. Seria ofensa, mas ele é o palhaço, o ofendido alegre. Já vi também, tive o prazer de ver um palhaço na coxia, após um espetáculo cansativo de risos, exaurido, molhado de suor, retirando a pintura branca e mais parecido com a gente, mas era tão bonito, quase pensei que era sua pele. Será que entenderam mesmo a apresentação de tal ser? Acho que pensam que sim, mas algo mais profundo calou na alma deles, da qual vão entender ainda, durante bons anos, em conta-gotas.
O artista muitas vezes é criticado por não se enquadrar, não serem bons em matemática, em lógica, mas são proativos em suas funções, mesmo técnicas e sérias (tenho amigos artistas em todas as profissões, inclusive no teatro) e são muito competentes, inclusive em partilhar a boa amizade com analisador de almas humanas como eu – não temem pela intimidade exposta, inda que eu os respeite muito. Dizem os especialistas que eles têm quociente emocional. Dotados de comunicação não em corredor, mas de triangulação - têm visão periférica e falam com várias pessoas ao mesmo tempo e ainda fazem várias coisas falando, como quem arruma seu figurino, sua marcação de palco e decora falas, enquanto anota uma receita de bolo ou dá uma ordem, tudo está interligado para o artista. Diria super-homens e mulheres-maravilhas. Aliás, já viram o que um malabarista faz com seus malabares? Então, não se deve julgar um artista pelas suas palavras, reclamações, ou “deslizes” que nos possam parecer e sim aprender, eles são mestre da alma humana.
E quando o coordenador marcar a próxima apresentação do grupo vai dar buchicho, porque uns vão reclamar do cansaço, outros do tempo com a família, outros sem dinheiro para a passagem, outros afônicos não poderão cantar, outros chateados por alguma razão. Todavia, na hora aprazada, sem nenhuma oposição do coordenador vão estar lá no teatro e, pelos olhos deles, de criança diante do brinquedo, a gente já sabe, queriam mesmo vir e o diretor sabe.

sábado, 19 de outubro de 2013

Caros amigos(as) ontem estivemos em Indaiatuba-SP, onde foram escolhidos os trabalhos literários para o mapa cultural do estado de São Paulo. De Piracicaba, Luzia Stocco ganhou aplausos e honras da bancada pelo trabalho Torradas não se despedaçam, mas não conseguimos classificação melhor. Foram interessantes as orientações dos jurados ao público de escritores sobre os trabalhos feitos e seus eventuais problemas, mas também lamentaram que muitos poderiam ter alcançado o primeiro lugar. Dos lidos ao microfone, muitas coisas boas e bem escritas. Penso quando algum texto meu vai ter a honra dos lábios e bocas, além da minha. Snif, snif...(interrupção para chorar, ahahahaha). A minha crônica desclassificada foi Morte Certa, mas eu já sabia assim como a morte é certa, meu texto não estava dos melhores, admito; mas este abaixo está tinindo e saiu do forno há poucos dias no jornal da região.
Juventude transviada
Qual é a imagem do avô de hoje? Perguntei aos jovens. Perguntei sim, pois tenho saudades dos meus avós, até da sisudez deles, meu avô de terno preto, surrado e bem caído, não tinha outro mesmo.
Por piegas ou saudosista que lhes posso parecer, as coisas dantes não eram tão efêmeras, tão portáteis e os presentes de casamento, como uma baixela, passava de mãe para filha e, às vezes, à neta.
As coisas valiam e, por consequência, as palavras também. Não precisava de muita folha para dizer o que se pensava, nem carimbo de ninguém.
O carro do vovô de antigamente, quando o tinha, era cuidado, bem cuidado, e o motor limpo e macio. Ao entrar sentia-se o cheiro de automóvel e do esmero. Qual é o cheiro de automóvel? Ninguém sabe. Antes tudo tinha cheiro, as coisas eram cheiradas, o café cheirava, dava tempo. Coisas boas e ruins tinham cheiro, até gente tinha cheiro de gente, não de perfume.
O mundo era mais simples, sem teclas e atalhos que dão bem mais trabalho e horas em frente da telinha piscante, você não vê, mas ela pisca. Os atalhos eram caminhos no meio da mata ou brejo e de muitos atrativos, encompridavam o tempo. Ah, existia a ideia de lugar, de onde voltar, um sagrado de vivências próprias, que ninguém pode comprar, mesmo que fosse de aluguel ou de favor. Existia o tempo, as estações. As expectativas eram de meses, preparando-se, assuntadas e únicas.
A ideia da casa quase desapareceu, a de minha casa, de almoçar lá, come-se na rua, bebe-se para esquecer e dorme-se ao lado de uma piscina coaxando como sapo. Voltar para casa? Ou para si mesmo? Mora-se mais em apartamentos, no corredor tal onde a luz acende e apaga, lá nunca tem ninguém, mais se passeia, é uma casa dormitório, come-se em alguma esquina, quando volta, viaja, põe a família no facebook e vai embora.
Todavia, hoje acho engodo à forma de pensar nesta figura mítica do velho. A forma ingênua do vovô, da vovó, como se fossem familiares. Essas ideias vêm carreadas pela da bom velhinho e boa vovó, provedores de coisas saborosas, brinquedos e do centro familiar, da mesa ou do chão onde construímos o nosso pequenino mundo, mas crescemos.
O vovô de hoje anda de moto, tem personal trainer, faz implante de cabelo e enxertos, pinta-se para ficar eternamente jovem, a idade não o faz arcar, tem excelente dentição falsa, pratica esportes radicais e, muitas vezes, está acompanhado de sua namorada que tem a idade da neta e ele sabe diferenciar. São, por vezes, problemas à família de tradição e de bons costumes, dando dor de cabeça aos filhos caretas.
Como disse antes, fui perguntar aos jovens sobre os velhos. Um me respondeu assim.
- Que foi, vovô, o que quer?
É, talvez já tenha idade... e eles veem os avós de outra forma que nós. Somos os antepassados deles agora, mas estaremos à altura de suas memórias, de seu tempo?
Creio que há em nós um tempo que não se exaure; pois ainda vejo o tempo preso nos bigodes do meu avô e o meu já vai em decurso, quase a avô.

sábado, 12 de outubro de 2013

A gente tinha uma certa revolta quanto a não ter os brinquedos, roupas e cuidados que os filhos únicos ou de outras famílias da cidade, mas tínhamos um quintal inteiro para a gente se sujar e algum carinho dos adultos, éramos bonitinhos, até que éramos, olhem esta foto abaixo, desse menino de cara feia, não se assuste, sou eu controlando a minha raiva de infância, que saía no primeiro xixi e de quando nos convidavam a  brincar de bola ou pega-pega. Eu só queria brincar um pouco, acho. Meu pai, mais bravo que eu, entendia isso. "Vão, vão, acabem de fazer o serviço aqui e vão brincá"
Blogueiro Rrrrr
Lar pobre
As cortinas, vê-se ao sentar nas cadeiras de assento duro, são brancas, velhas, puídas e lavadas, e cobrem um tempo memorável, talvez muitos não gostem, eu as conheço.  O sofá recostado na parede espreguiça de um tempo em que meu pai sentava para ver o Palmeiras na TV. As sombras que o vento balança a cortina traz um pouco da silhueta antiga e eu mesmo estou lá sentado no fundo da poltrona vendo algum seriado. Fora os sons de uma casa de subúrbio, com pássaros e carros, de fora. Lembro quando lá mudamos, vim com meu caminhão cor de vinho que não me desgarrava. Muito tempo passou e todos foram indo embora e eu fiquei. Fiquei para fechar a porta à noite de muitas luas e abrir ao dia de muitos Sóis.
No quarto repousa um velho guarda-roupa feito de encomenda pelo meu pai, na cabeceira da cama que não mais existe repousa os retratos de casamento e dos meus avós, um terço norteia a parede velha e com furos no reboco. De lá me lembro, de lá estou muitas vezes em meu devir, lá dormia meu pai e acordam minhas lembranças.
Na copa o relógio das horas contínuas parou, os ponteiros insistiram em não mais voltear o tempo, o tempo parou, pai, às 10:15 horas de seis meses atrás. Você sabia que eu ia escrever, sempre escrevo, antes talvez se constrangesse, mas agora sabe que escrevo. Mas lá não tem mais relógio não, as horas passam aleatórias e podem ser marcadas na eternidade ou desmarcadas a qualquer hora. O tempo fez isso com a gente, e tanto culto fizemos a esse marcador esquisito que achamos que abria o dia e fechava a noite. Não agora, não mais. O tempo pode correr, eu vou devagar.
Acima, no telhado, algumas goteiras furtivas. Ainda têm. Arrumei muitas vezes, subindo eu mesmo lá e como o tempo, iam pelos vãos dos dedos, pelos interstícios da matéria, pelos vazios da existência; vazio não, preenchido pelas goteiras, aliás, um texto igual a que faço é também uma goteira. Não tem mais arrumação, a vida se escoa. Que escoar, escoe para outra vida, mas qual? Escoa assim mesmo.
Nesses dias tive de dormir no mesmo quarto de meu pai, recostei-me e fiquei, estranho. Comecei a ouvir os sons que ouvia. Sua cama era ao lado de uma janela de um jardim cimentado e o eco trazia muitos sons que ouvira, aos meus ouvidos, ouvindo. Deixei o eco findar-se longe e num sono apaguei na paz do leito de meu pai.

sábado, 5 de outubro de 2013

As mortes de Josef K.
(Ao aparecerem as angústias, interrompam a leitura)
Inicio aqui:
Chegou cansado à quitinete, a vizinha o viu do corredor e ele apagou a luz terminal, então a escuridão escondeu qualquer presença humana. A janela que abria ao sol da manhã fora fechada por outro edifício no boom imobiliário, via outra janela e a mesma solidão. Abaixo o chão que se espremia nos ventos canalizados, marginalizados por condicionadores gelados e roncadores esborrifando água fora. O sol não chega, a chuva inunda e vê-se a sombra de Josef K. Somente a sombra.
Se saísse? No dia anterior percebeu dois senhores o seguindo, não eram ladrões, mas lhes tiraram o sossego diminuto entre ansiedades do moço na privacidade obcecada. Ademais, suas contas estavam vencendo e o seguro-desemprego estava vencendo no quarto mês, sob a mesinha o quarto-sala da quitinete, sob uma pedra.
Estes mesmos senhores que subiram ao seu andar com crachás informando do atraso do condomínio, que então estava livre para sair, mas pagava para ficar – morava sob grades e olhares do porteiro que matava palavras cruzadas, conhecera os cobradores da primeira vez, solícitos, mas que endureciam o cenho pela falta do pagamento, ora fingiam benevolência, ora um, ora outro e, sob vistas dos cobradores, até o comer lhe era luxo.
Os impostos se avolumaram sobre a mesinha vazia, era um devedor inscrito, um devedor da sociedade sem vizinhos. No socavão entre os quartos desciam urubus e algumas vassouras em toco, invisíveis, de uma bruxa inexistente aos olhos de adulto que não viveu a infância. Local inóspito, úmido e frio, isolava gritos aflitos ou queixumes retidos de Josef K. que já não falava e de pensar muito desistia, como a se ver como um caule ressequido esperando algum animal que o devorasse, mas não, somente ressequia.
Num dia um vento de chuva abriu seu diário e destelhou as folhas velhas de sua vida para o socavão, tão efêmeras, fugidias e sem sentido. Sobraram-lhe os impostos que não conseguia saldar, sem metáforas, onde o divino poderia habitar o desumano de K., que abriu os braços antes de pular.
Não continua não.