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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sexta-feira, 27 de março de 2009

Uma homenagem ao meu avô materno. Carlos.
Jardinagem

O velho Carlos ali plantava, enxertava, ajeitava os canteiros, e convivia com todos os seres em miniatura do jardim. Estava encurvado pela idade o homem rude e cheirando a suor, a perfume de plantas e à terra. Conhecia os beija-flores quase que pelo nome e pelo vôo e os via por segundos, batendo suas asas invisíveis, inesquecíveis. Os pássaros em confiança voavam rasantes ao velho de cenho branco que se entretinha em meio a tanto verde e cantos de algazarra daquele passaredo. Afoitos surgiam no ar com danças mirabolantes, outros paravam nos galhos das árvores, cantavam nas moitas e até ciscavam no jardim. Seus pensamentos eram limpos, sua cruz era leve e a natureza amiga. Ao chegar a casa à noite, entrava pelo quintal, tirava os sapatos de terra e antes de entrar na civilização, sentava-se, parava a pensar e agradecer ante o sol que se punha. Lá na cozinha, Irene chamava-o, que subisse a escada e saísse de sua soleira amiga, o jantar estava pronto, que viesse comer. Alguns netos entretinham o olhar na cena, vinha com uma rosa e sem jeito oferecia a Irene, tímido. Velho bobo não precisava se preocupar, dizia, mas todos os dias seu vaso de louça estava repleto dos mais variados matizes e perfumes. O sono de Carlos era um canto uníssono com Deus e com a liberdade.
Portava também um velho livro de folhas amareladas pelo tempo, de orações ao Senhor dos Jardins. Orava em pensamento, enquanto trabalhava, pelos jardins e jardineiros do mundo, por todos os jardins e casas, caminhava sobre as dez pedras brancas que ele mesmo colocara e que faziam o responso aos seus pés, em meio à grama. E que todos pudessem ter seu jardim! Amém. Sabia que não iria além do jardim, queria ser uma daquelas árvores, feias e rudes, a gozar da companhia das flores, cascas, poeira, sementes, que a natureza produz em sua vital dinâmica, arrasadora, inexorável e bela. Ao passar pelo jardim é possível ouvir-lhe os passos pelo farfalhar da grama num ruído verde que rompe o tempo, num zap-zap bem manso. Em meio ao jardim há água aos borbotões, o sábio jardineiro plantou uma vegetação de raízes profundas e ávidas de água, enriquecendo o seu solo, túmidas. As rosas perfumadas e lindas, noutro dia são folhas que ele varre amiúde junto aos pés das árvores. Sabia que seu jardim era efêmero como ele e sua glória. Aprendeu a ser humilde e feliz esperando o seu súbito final, a morte.
Foi capinado da terra e caiu como uma árvore, ainda com os ramos estendidos. Seu jardim acolheu o seu corpo, agonizante. Passou de um jardim a outro, o Senhor dos jardins acolheu o seu servo. Fizeram-se presentes todas as rosas, borboletas e uma grande revoada de pássaros de todas as espécies e cores, em seu funeral. No caixão de cedro, como que dormia, espraiava um sorriso em sua face, ainda rosada. Não quis honra, nenhuma pompa, apenas a mortalha, não quis nada, nada levou, foi inteiro para o céu, para o jardim que a muito estava preparado, antes da fundação do Universo. Morreu para este mundo, sem maculá-lo.
E lá, no jardim inominável debaixo do céu, das raízes enlameadas e túrgidas, ainda transparece a vida dadivosa das plantas. Nos fundos de uma casa velha e ruinosa, a qual descascam-se as paredes e os cômodos. Sim, é a umidade do jardim dizem os engenheiros. É preciso derrubar o jardim, cortar a cabeça do Capitão e Dálias ao fogo, caçar os Antúrios, assombrar os Girassóis, corrigir essa tal Maria-sem-vergonha, nem que sejam as Onze-Horas, que se arranquem as Avencas e acabem com essa encrenca, tire-se o Chapéu-de-Couro, regurgite-se o Boldo e que se feche a Boca-de-Leão, nem que seja Flor de São José, nem que a Dona Margarida abra essa ferida, nem que se jogue a Hortênsia, nem que o Cravo apazigúe com a Rosa, nem que renasça os Gerânios, que se derrube o arvoredo e se espante o passaredo, chega de Palmas.
Assim, indefeso, o jardim foi pisado, arrancado e calcado com cimento. Impiedosamente as flores foram jogadas dentro de um saco para o caminhão barulhento do lixo. Puseram um piso belo, importado com desenhos de plantas, muito bonito e limpo, sem necessidade de nenhum jardineiro.
O povo que vive do lixão retirou as plantas do meio dos cacos de vidros, latas, pilhas usadas, restos de comidas e outros detritos “desumanos” – de coleta não seletiva - e plantaram numa área invadida por pássaros, beija-flores, borboletas, gafanhotos, grilos e todos os rejeitados pelo centro urbano. Um novo jardim? Então encontraram também o livro de folhas amareladas, onde se lê nas letras rudes e piedosas de um recém analfabeto: Eis que o Senhor fará novas todas as coisas. Carlos.

segunda-feira, 23 de março de 2009



O feitiço de Áquila

Áquila era um jovem de uma vila do interior do Brasil, filho de imigrantes italianos. Muito supersticioso, não fazia determinadas coisas (ou coisas determinadas): passar sob escada, sair de casa em sexta-feira treze, não ir ao trabalho se um gato preto lhe passasse no caminho de manhã, tomar banho após o almoço, comer manga após beber leite. Outras coisas, Áquila fazia por devoção mesmo, como ir a Aparecida a pé, não comer carne em sexta-feira santa, persignar-se ao passar em frente a cemitérios, templos e santa cruzes. Decalcara em seu carro tanta santaria e frases de proteção – S.Jorge matando o dragão sobre um cavalo branco, medalhinhas mil e outros santos de seu panteon - que quase foi multado devido ao ruído estético e a falta de visão daquele templo volante com farol dianteiro quebrado que parou quase sem combustível ante uma policial feminina que se assustou com aquele S.Jorge cavalgando no escuro com um dragão no volante. Era noite. Ora para onde ia o Áquila? Estava triste e desorientado.
Quando jovem foi ter com uma cartomante. Estava apaixonado, logo de primeira vista. Foi assim, viu a moça de perfil, bela, de nariz aquilino, olhos verdes com gradações em azul, pele em rubor de esquivar olhares. Estava lá a mulher com quem se casaria, teria filhos, etc. Tudo isso em meio minuto. Mas ficou sabendo que era noiva de Julião, um rapaz metido a besta que não a merecia. A cartomante olhou o jovem Áquila com os olhares de quem lê as cartas na cara do cliente e viu nas cartas, um jovem suado, sem aliança nos dedos, cheio de energia contida que se soltava num tique nervoso, jogou as cartas na mesa de toalha vermelha e macia que caíram sem ruído algum nos ouvidos do consulente, visto que o seu cliente não sabia diferenciar um coringa de um valete. Virava as suas cartas, sinuosa, com seus dedos como quem mexe na vida alheia, e dizia coisas sobre ele deitando seus olhos mal pintados sobre as cartas e os movimentos do cliente terminando com hum de indagação ou de não te falei. A leitura das cartas ia tão bem que Áquila nem percebeu baterem na porta, só percebeu quando a cartomante – que sabia tudo pelas cartas – perguntou quem era. Entrou uma velha maltrapilha, olhou para ele e lhe jogou um feitiço dizendo que se casaria, mas sua esposa e ele seriam como a águia e o lobo. Só se encontrariam à tardezinha, na mudança do dia para noite, porque à noite ele se tornaria lobo e de dia ela se tornaria águia. Viveriam juntos, mas separados pelo tempo e pela natureza animal.
Durante o dia Áquila tinha uma vida e uma alma feliz de uma pessoa normal. Interagia com pessoas e entidades públicas. Tinha uma função social, nome, Rg e CPF. À noite tornava-se um lobo solitário à margem de interjeições impronunciáveis e indescritíveis numa crônica como esta. Perambula pelas ruelas escuras de sua vila e de sua vida roído de ciúmes e idéias às avessas, que a solidão e o desamor criam e voltava de madrugada, quando o sol ia nascer, no limiar entre a noite e o dia, e encontrava-se com uma jovem de uniforme da policia e sorriso largo com quem se casou. Casou-se mesmo com a mulher de seus sonhos depois que ela deixou Julião, mas ele ainda alimenta ciúmes do antecessor. Ele deveria ser o primeiro! Assim Áquila foi definhando e não voava mais como uma águia, mas dava pulos na cerca como uma galinha e não passava do outro lado. Pensava mesmo que era uma galinha, porque as águias pulam de altos rochedos, estendem suas asas e planam nos céus. Áquila fez um galinheiro mágico para sua vida e se pôs sobre um poleiro tremendo de frio e de inveja dos abutres planadores, até que naquela fatídica noite em que foi detido pela própria esposa. Que vergonha! Ela lhe autuou, mandou rebocar o carro para um ferro-velho, levou-o para casa de viatura, pôs na cama, o cobriu com um beijo e pagou a multa de Áquila, que sonhou com ela até o amanhecer e pelo resto da vida celebrando o encontro de cada dia.

sábado, 21 de março de 2009





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Sons

Perto da casa de meu avô passava o trem. Certa vez dois homens foram atropelados ao atravessar a linha, a noite. Meus tios foram ver o acontecido. Nós crianças fomos privados da visão horrenda. Dava, contudo, para se ver da casa, um monstro comprido, parado com um holofote aceso e um aglomerado de gente em volta. Quando voltaram diziam que os mortos eram assim, trabalhavam não sei onde e quiseram cortar volta, porque iam fazer não sei o que. Dois desconhecidos que comecei a ver na rua, no rosto de outras pessoas, todos começaram a ter as caras dos mortos. Às vezes, estávamos jantando e ouvíamos o apito, dava para se ver aquele monstro vindo, soltando fumaça e se ficássemos quietos ele passava. Os apitos eram cada vez mais próximos, mas estava passando já, ia-se. Os trilhos eram um tabu, perigosos.
Outro som que ouvíamos era o do sino do cemitério, cada vez que chegava um corpo para enterro. O coveiro ficava postado embaixo dele e puxava a corda do badalo, que parecia um martelinho chato o seu som. Parecia que tocava sempre a tarde, quando o sol ia se pôr, o que dava mais tristeza. Sabíamos o que era enterro. Este ato nós acompanhávamos mesmo na tenra idade. Era um ato religioso, um dos atos de misericórdia do catecismo romano. Enterrar os mortos. Mortos que nunca enterrávamos, porque a cada badalo que se ouvia de casa, aquele comentário da minha mãe: hum, mais um que se vai, coitado. Imaginava esses mortos, era o que mais eu fazia, até meus brinquedos eram imaginários de tão escassos e de quebrá-los para ver como foram feitos, acabando por destruí-los. Quem seriam aquelas entidades? Mortos para nós eram pessoas, que tinham certo poder. Sem corpos, almas, fantasmas. Velhos, os velhos morriam. Se fosse criança virava anjo. Mas aquele som do sino do cemitério prendia-nos por uma emoção estranha da morte de outrem.
O sino da igreja era um sino diferente, que ressoava. Era um sinal de domingo, de festa. De obrigação somente a missa e depois algum parente vinha nos visitar, ouvíamos a prosa dos adultos, éramos os coadjuvantes mais participativos. A lei do “primeiro os mais velhos”.Então sentávamos a mesa e após as visitas servirem-se, fazíamos o nosso prato com macarronada e suculenta mistura. Era um dia de graça, ninguém batia no filho na frente do hospede. Era bom o domingo, mesmo que as segundas-feiras fossem cinzentas, restavam um pouco do calor do dia santo.
O tempo passou e hoje o som de moto com o escapamento aberto e aquele som do caminhão do gás...Um Beethoven mal tocado, escorrido pelo ouvido como cera. Credo. E meu Deus, pour Elise, os cachorros, que tem audição mais aguçada, não suportam! Talvez sintam como o apito do trem ou o som do martelinho do cemitério. Latem sem parar, assustados. Será que vale o preço de um botijão?
(Texto publicado na Tribuna Piracicabana em 21/03/09)

sábado, 14 de março de 2009


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Por minha vez vou comentar, como faz opankada no seu blog, que ontem vi os cover dos Be Gees aqui em Pira e recomendo. Hoje o texto tá bom pra cachorro.
Evolução das espécies

Desculpe-me Darwin, mas no desenho do esquema evolutivo dos hominídeos até o Homo Sapiens, o próximo elo seria o cachorro, mais evoluído que o homem. Sim, o homem evolui para a do Canis Familiares. Na pré-história já o cachorro foi domesticado, adestrado. Enormes feras se submetiam sob a guia de algum homem-macaco alfa ou mais recentemente sob as ordens de algum Barão posudo, da idade média. O cachorro via de regra aprendia e imitava os costumes do dono, a postura, o olhar, o jeito de andar, etc.
Talvez isso se deva ao mundo capitalista. Os cachorros de senhores abastados, são lhe dóceis, comem nas mãos, lambem os patrões, mas a necessidade de se buscar comida e por vezes, alimento regurgitado, faz os cães mais destemidos. Nas regiões pobres, após vários cruzamentos surge um cachorro, típico da pobreza. Um cão que revira o lixo e vai em busca do alimento diário, sem pestanejar, sem ligar para humilhação ou amizades inconvenientes nos bares e restaurantes. Sabe oferecer a outra face a cada patada humana. Não faz acepção de pessoas, se dá bem com sóbrios e bêbados. Como o cachorro do italiano da venda, que o barulho lhe acusava a presença. As latas do lixo freqüentemente estavam reviradas na calçada, as de leite em pó dentro de saquinhos, cortados pelos caninos, desciam a ladeira acordando os vizinhos. E logo gritava: È varda tomba latone! O engenhoso vira-latas brasileiro, conhecido até na Europa. Um cão de rua que aprendeu a se virar e a virar latinhas para sugar o resto dos alimentos. Um cão de ninguém, que sai em retirada para não ser alvejado por alguma pedra.
Hoje, em pleno sol de meio-dia, vi meu vizinho que ia pela rua e na frente um cachorro como se segurasse uma guia invisível. O cão o puxava, ia a frente. Tão parecidos, eram como dono e cachorro. Um cãozinho preto e roliço. Puxei assunto com ele para falar sobre o “seu” cão, que também parou para ouvir. Bem, assim, só pude lhe dirigir elogios e perguntar se o animal era seu. Não. Nem sabia quem era o infeliz em busca de dono. Disse que apareceu por lá, pedindo água e algum osso. Tinha sim um cachorro, mas não este. O seu era imponente, ganhara vários concursos de beleza. Este era um enxerido, aparece e desaparece quando quer, deve ser de algum outro vizinho, mas se dá ao luxo de transitar pela cidade, tomar ônibus e roubar os cafunés das pessoas, mas não dele o pseudo-dono. O vira-lata ouvia tudo calado, não se importava, nem um latido. Fingia-se de surdo, só olhando, cheio de sentimento. Fomos andando e quando chegou a casa, despediu-se de mim e entrou sem o cachorro.
No portão ficamos eu e o cachorro, olhando através de uma grade quadrada, com duas gaiolas na parede, um chão de piso branquíssimo e uma beleza fria e inóspita de uma casa amuralhada e bela. Ele morava ali, numa casa tumular. O lixo ficava suspenso num cesto de metal e só o caminhão do lixo o pegava. O cachorro dava-me estranhos olhares e nenhum latido. Lá no fundo daquela pirâmide moderna estava o seu elo perdido.Fui embora sem o cachorro. Ao passar novamente pela mesma rua, já tinha se ido. A casa continuava com aquele aspecto de arquitetura preservada e terrivelmente limpa, sem nenhuma viva alma. Um silêncio de casa sem ninguém, sem campainha ao alcance da mão e uma voz rouca que perguntava quem era. As palmas ecoavam pela garagem com dois carros novos. Um cachorro espiava pela porta, era o seu. Fui embora com medo.

terça-feira, 10 de março de 2009


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Homem na lua

(562 leituras no site da Tribuna Piracicabana e muitas criticas, não é das minhas melhores, mas?)

Os americanos chegaram à Lua, os soviéticos também. As nações de primeiro mundo fizeram estações orbitais no espaço. Ficavam dando voltas, imitando um astro gravitando ao redor da Terra. As viagens interespaciais, antes ficção, hoje são factíveis. Os avanços na área da robótica, da medicina e da física são surpreendentes. E aqui do lado do Cruzeiro do Sul, onde o céu é mais azul, o sonho de se chegar à Lua, de ter um astronauta brasileiro foi ganhando corpo; assim como a prosa que tive com o vovô Patusko, que já foi astronauta de testes, recusado no programa espacial por indisciplina. Sentado em sua cadeira de balanço, aparando com as enormes mãos os imensos bigodes, confessou que a sua dispensa se deveu àquele capricho: não cortar os bigodes de escova, pegava mal na mídia e dava problema para pôr o capacete espacial. Contou-me que muito foi adaptado dos testes da Nasa. Testes no ambiente sem gravidade, sem chão. Isso era difícil para um bonachão, gordo como vovô Patusko.Para flutuar: o candidato à astronauta teve de passar um ano com o salário mínimo, perdendo peso. Escolheram o melhor, o que sobreviveu e mandaram para o espaço. Mas a primeira nave tripulada sofreu dano ao retornar à atmosfera terrestre e o tripulante morreu atropelado por um meteorito. Erro de cálculo da trajetória de reentrada, mas o meteorito salvou o grupo de cientistas desviando a atenção para o pequeno meteoro. O segundo vôo caiu no rio Amazonas e os índios comeram o tripulante, assado já. O terceiro vôo deu problema na comunicação e era um domingo de futebol clássico no Morumbi.A imprensa noticiou o roubo da bola que o jogador lançou contra a arquibancada e sumiu no meio da torcida “organizada”, diziam que o vendedor de amendoim saiu com ela no cesto ou pôs num cone de amendoim para disfarçar. Até hoje não se sabe, mas a câmara de segurança flagrou uma jovem grávida ao sair pelos portões laterais, antes não tinha barriga. Enfim, depois de que os americanos fincaram sua bandeira na Lua e os soviéticos fizeram suas incursões além da camada de ozônio, há certo desinteresse da opinião pública. Chegar à Lua agora é coisa de político e de chinês. Ninguém liga mais, só as autoridades e a elite.Depois de tanto desinteresse, a multinacional do espaço Sideral & Sideral terceirizou os serviços e mandou um padre para o céu. O padre Josef Balon. Um astronauta ideal. Subiu aos céus dentro da roupa de astronauta, sem ser reconhecido para evitar merchandising religioso, constava no contrato. O religioso, a exemplo dos primeiros astronautas, olhou a terra e viu que era azul e que Deus não estava lá, na Lua. Desceu no astro parcialmente iluminado. Solitário, deu voltas aos pulinhos e em comunicação com a terra, voltou para a nave correndo, estava frio e solitário ali. Tinha a alma leve e o corpo também. De repente as comunicações foram cortadas bruscamente. O padre ficou lá, sem contato com o comando do programa espacial na terra. Ouviram-se chiados como chuva, rojões e nada de som humano, nada compreensível. O sonoplasta do programa espacial terceirizado então tentava pegar alguma estação de rádio do exterior e ver o resultado do jogo amistoso de seu time e também ver alguma coisa diferente além da lua, até que as caixas de som do imenso laboratório espacial voltaram a retransmitir direto da Lua: Pamonhas, pamonhas… pamonhas de Piracicaba.Por fim, conta Patusko, que o padre voltou. O programa obteve contato visual em tela quando da reentrada na atmosfera terrestre e o padre, faminto, via-se pelos beiços amarelos, acabava de “matar” uma última pamonha com palha e tudo. Desceu da cápsula na praia de Copacabana e na corrida até o banheiro o atleta de Deus foi ovacionado por civis e militares que se postaram para recebê-lo. Após a chegada do banheiro e da Lua, mais magro e grisalho, deu entrevista coletiva e oficial contando que lá, na Lua, viu estrelas e cangurus saltando de um lado para outro, que a terra não é azul e sim verde e amarela, Deus o esperava lá e o seu time, o qual não divulgou o nome, finalmente ia ser campeão. Mas e as ditas pamonhas?! O padre astronauta contou que já eram vendidas no espaço interplanetário e comprou de uma nave espacial que passava por lá, por um real a dúzia.Aqueles homenzinhos de orelhas pontudas não perdem um cliente, mesmo! Graças a eles, sobreviveu, porque tinha acabado o estoque de pílulas de água e de comida. E o retorno à Terra?! Foi fácil. Deixou a cápsula dar voltas ao planeta, até que entrou na atmosfera em segurança, sem queimar com o atrito do ar e então fez uso do tele-transporte para se materializar novamente no assento da espaçonave. Que viagem!

sábado, 7 de março de 2009

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Dapho

Lê-se a inscrição DAPHO no cocho antigo de comida junto à porta. Velho e comilão, a cheirar o vento, a ver o dono sentado e culturalmente acondicionado em sua mesa. Causídico ilustre no meio de muitos volumes de processos pendentes. A pendência e os prazos é o que mais domina o mundo dos humanos. Inventaram o relógio para contar o tempo que não podem controlar. Fazem projetos, lembretes, intenções e no fim tudo termina num inventário volumoso ou até em autopsia, a desgosto do morto.
Dafo (pronuncia-se assim) olha, por vezes chora, escondendo as lágrimas nos pêlos e nas dobraduras de seu rosto de canino velho, de Sharpei. Lá esquecido, alegra-se com um resto de comida, com o cheiro do dono e nem o fiscal do condomínio o percebe, se o vir não ligará. O mais longe que vai é quando desce as escadas para pegar o jornal matutino, que lhe servirá de cama no final do dia. Isso aprendeu a fazer desde filhote. Se o entregador se atrasar, fica aguardando no jardim atrás de alguma roseira.
Pela porta aberta reencontra o bípede, agora líder da matilha. Esse sabe fazer coisas interessantes e usa uma língua, que não sua, debaixo do pescoço, chamada gravata. Usa uns olhos postiços para ver, tem um olfato péssimo, que se não latir nem percebe o cheiro da chuva que se aproxima, para fechar as janelas. Um gato branco da mulher do dono também perambula por ali com uma coleira vermelha e seu nome gravado. Quando ela não está, o gato além de importunar Dafo, faz lembrar ao dono o asseio feminino e os hábitos culturais da estética, que por vezes, destarte a pressa e seus modos, são práticos, mas bárbaros. Sua letra é um risco mal delineado, que, ao reler, se socorre com os filhos para elucidá-lo.
Dapho aprendeu a repartir o espaço com o felino, porque também já foi “menino”. O gato some, reaparece à noite. Volta arranhado ou nervoso, ele não se apavora. Tudo passa. Os seus filhotes por certo errarão pelo mundo das vizinhanças, ou serão castrados por alguma madame solitária. O pior é quando o bichano lhe olha nos olhos, não o teme, não o ataca, mas é como se tramasse um ardil; Dapho sempre leva as culpas da armação do felino. O dono não consegue defendê-lo diante da esposa, por mais ilustre defensor que seja. A sua fama de bonachão, vagabundo e preguiçoso ficou na casa e até na consciência do dono mesmo.
O canil é o seu destino, decidiram numa junta de família, em última instância. Guarde-se uma foto no computador para as crianças. Percebeu Dapho a movimentação dentro da casa e que queriam dar-lhe um destino cruel, com piedade humana. O gato ficaria só, mas também a casa, porque gato não pára em casa, pensou Dapho, que nunca buscou o seu espaço além do jardim. Far-se-ia picar por alguma víbora como Cleópatra e escaparia à “piedade” do seu melhor amigo.
Assim foi-se Dapho. Peço somente ao dono que pegue o jornal no jardim para ler, ao menos neste sábado, esta crônica. Lembranças do seu cachorro. Dapho.
(Obs. Publicado na Tribuna de Piracicaba, sábado de 07/03/09, crônica criada a partir da descrição e discrição de um cachorro de um amigo)

sexta-feira, 6 de março de 2009

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O criador de tramelas

A forma perfeita é a circular. O melhor designer, a beleza é redonda. A perfeição é o círculo, diz o padre Vieira, embora eu ache que seja a espiral. Mas vamos as tramelas do seu João.
O homem sabia fazer tudo em madeira. Os desenhos da prancheta, por vezes, deixados de lado com um chá frio e uma bandeja de migalhas de pão, dava lugar a um projeto pessoal de íntima relação com a matéria bruta. Ia fazendo sem esboço, conforme a mente e os acidentes propiciavam a obra. Criações inimagináveis em designer arrojados e apreciados pelas pessoas modernas e ricas. Gostavam e pronto, compravam. Gênio simples e rude, seu João arriscava sua criatividade ao acaso, para ele o Universo fazia as formas do sucesso e um dia ganharia muito dinheiro. O dinheiro viria e juntaria a rodo, um pau de pegar água nos cantos que desenvolvera de forma ao seu gosto. Desenvolvera cabos de facas, bengalas, tudo personalizado. Ficava por dias em trabalho de criação, até que algum fato inusitado viesse a lhe dar a luz, como um Buda sob a figueira, esperava a Iluminação, o insight. Seu trabalho era arte, não artesanato, fazia-o sob encomenda e como Deus, não se repetia.
E foi assim com as tramelas encomendadas. O comprador, fazendeiro rico, queria tramelas personalizadas para a sua fazenda. Não aquela madeira retangular e verde pregada ao batente e que mantinha as galinhas fora da cozinha na porta de serventia ao quintal, nem as que serviam para manter as janelas rudes no seu lugar em dia de vento, mas algo diferente, que não sabia o que era e para isso contratara os serviços de seu João.
Seu João pensava e testava todas as idéias. Reconstituía em seu laboratório a porta, a janela e testava as tramelas. Foram dias, meses, sem sair de lá, num contínuo de tempo eterno, sagrado. A esposa estava se cansando de ver o marido naquele trabalho, exausto sem nada produzir, sem comer e beber. Era uma compulsão. Nova forma, um novo desenho na prancheta, marcas da ponta do compasso, lápis com ponta quebrada e riscos na própria mesa, era o impulso de ira a cada fracasso. Quebrava compasso, lápis, souvenires. Esmurrava a mesa impiedosamente. O temor da esposa, a cada visita ao ateliê, de se ouvir o pam-pam na mesa pelos murros da insistência de seu João. A presença da mulher o incomodava, tirava-lhe a concentração e o trazia à rotina cansativa daquele olhar meigo com sua travessa de biscoito caseiro e o bule fumegante do chá da tarde. E nada de sair sua criatividade embotada.
Numa destas visitas atingiu com um murro a tramela redonda na porta-teste. Metade caiu e metade ficou fixa no batente. Um golpe de sorte. Estava resolvido o problema. A porta abriu-se no espaço do meio círculo vazio. Obvio demais, solução advinda do acaso, de um acesso de raiva, essa era a idéia que o Universo lhe dava, o vazio lhe dera a solução, os dois lados do Tao, yin e yang. Refez o desenho, por peso e medida e um formato que propiciava abrir com resolução integrada, a prática e a beleza, de forma simples e registrou sua patente. A tramela abria e fechava com um pequeno deslocamento de contrapeso de adorno num dos cantos, que voltava ao repouso depois de a porta aberta ou fechada. Genial, gritaram ambos. Bonito, simples e lúdico!
Tomou o chá e os biscoitos, pensativo na consecução da obra. O modelo em série. Era só seguir o fluxo do acaso criativo até o colapso da ordem cósmica e da criação da obra: a tramela adornada.
Passados dias o dono da encomenda veio buscar as tramelas. Não estavam prontas. O homem passou pela porta aberta por uma bela tramela dourada. A esposa de seu João o recebeu. O marido veio depois e cumprimentou o visitante com a mão esquerda. A outra estava dolorida e inchada, atingida por muitas tramelas. Ainda não terminara a sua obra, o mercado que esperasse. Não especulava com a sua criatividade e talvez nem as vendesse, eram de muito apreço.


domingo, 1 de março de 2009


Para descontrair um pouco...
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Missão espacial

A ciência quase divina do primeiro mundo garantia o evento. Expectativa era a palavra. A humanidade chegaria a lua com um russo e um brasileiro na mesma missão. A fronteira final.
A missão espacial estava culminando para o lançamento da nave com o foguete. Milhões de litros de combustível. Como um bólido a nave ia ser lançada com os homens dentro. Dias antes os astronautas, como monges, ficam em retiro, também chamado de quarentena, para aquecer e preparar a mente para um mundo novo, o espaço. A transcedência. São heróis. A alimentação é feita por pastillhas de comida, nem a cozinheira, nem a familia vão junto. Estão sós no espaço. A missão pode fracassar por falha de algum componente minúsculo que seja, mas por falha humana nunca. É aprendizado, experiência. Se não voltarem vivos é porque foram sepultados no espaço. Vão para o infinito como deuses. Mortos no espaço, nas estrelas e a vista de todos. Estarão no livro de história.
Mas na quarentena houve um conluio entre o astronauta russo e o brasileiro. Iriam apostar corrida na superficie lunar com os carrinhos de coleta de amostras. Aquele carro parecido com formula I, com três metros de comprimento, de alumínio e mais leve, seis vezes menos peso na atmosfera de S.Jorge, chamou a atenção de vovô Patusko. Fórmula I ou carrinho lunar, voltara de vez à infância. Um jipinho elétrico que podia brincar por todo canto, sem a mãe para lhe puxar as orelhas. O russo por fim aceitou a proposta. Iriam fazer o americano nanar e sair a noite para dar voltas com o carrinho, no qual os cientistas americanos puseram toda a sua tecnologia, inclusive o comando de joystick. Patusko argumentava que a tecnologia era americana, mas o aluminio e o aço eram brasileiros.
De nada valeu a quarentena pré missão, a pregação cientificista da conquista do espaço, da escala evolutiva de espaçonautas: cadela, macaco e agora o homo sapiens. Eles queriam o próprio espaço, brincar de Formula I na lua, jogar areia na cabeça dos homens sérios. Não se contentavam com os pulinhos encenados do primeiro americano na lua, com uma bandeira esticada sem vento, com um aperto de mão espacial representando nações contenedoras, queriam brincar. A ciência para eles era um jogo de probabilidades, de ritmos, de possibilidades holísticas, de divertimento.
O russo posicionou-se na linha feita no chão. Patusko acelerou para aquecer o motor, um ronco silencioso, harmonioso, tinham de cuidarem-se para não cair em alguma craterra. Tinha-se a impressão de que na lua sempre é noite, umas sombras azuis-pálidas sobre um montículos brancos frios e uns buracos como ventosas na superficie e saudade de casa. A corrida iniciou-se pela gravidade diminuta, carrinhos andando desengonçados, sem grande estabilidade ou freios ABS. Os carrinhos batiam em montículos daqui e dali, barulhentos. Um facho de labareda saiu de uma craterra. A enorme fera pôs as patas para fora, ia subir. Então apareceu São Jorge com seu cavalo branco, armadura corta fogo, uma lança brilhante e fria e fez o lagartão descer para o sono, não era lua cheia ainda. Ufa! Mas o dragão estava vivo!? Sim, era de estimação e saia a tarde para lagartear, enquanto o santo cavaleiro fazia equitação. A solidão do infinito prega peças, vê-se coisas. A noite retornou ao silêncio gostoso, enquanto lá na terra os galos cantam no paiol e a lua vai-se no arrebol.