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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sábado, 26 de novembro de 2011

O ninho


A palavra ninho é interessante e seus derivativos como aninhar e a idéia de algo de aconchego, de cuidados extremados pela cria, dão a cor a este vocábulo: ninho. Vejam o texto abaixo e comentem, critiquem, é sua leitura, abç a todos.

- Olha, mamãe!
A mãe bateu atrás de si a porta do carro, atrasada. O pequeno olhava para uma ramagem do jardim antigo e tosco. Já falara com o marido ocupado pelo celular, ia pegar o filho ela mesma – o compromisso do cônjuge era mais importante que o dela. Ela podia cancelar até o próprio almoço e trocar o cardápio por obrigações maternais, mas o dele era almoço de negócios.
Elegante e educado com os clientes, assim se portava ao celular com ela. “Tchau, bem. Um beijo no Júnior!” Até o menino tinha o seu nome, tudo era dele! O divórcio já estava protocolado de comum acordo. Vida nova ou novas aventuras, ou perdas e ganhos. O Júnior ficaria bem – iam contar na hora certa, depois de acertarem as visitas. O filho ficaria bem com escolinha, brinquedos, computador. Nada faltava.
E de mãe que fora ainda não perdera as sensações do olhar materno, das sensações de barriga, de saber o sexo de seu bebê, do rostinho que veio, dos risos de espasmos, mas ia se esquecendo aos poucos o que era isso, em meio à rotina. Já nascera mesmo de um casamento infeliz, a tia cuidava dele em idade de escolinha. Ah! A escolinha. Aquele casarão velho repintado com cores vibrantes deixando o contraste do jardim velho ou de um jardineiro velho e falecido. As crianças e professoras cuidavam dele. Os ferros rústicos de suporte à parreira não fora tirado por novos, acabara a verba. Aquele trançado retorcido e duro de um metal de ferrugem por dentro, achava, sustinha as ramagens de algo que o filho apontava, mas ela não via importância em tal visão. Estava lá há tanto tempo a velharia, sempre evitou o antigo, a fealdade do decadente. Tornava prescrito aos seus olhos pessoas e objetos que não se enquadrassem em seu modo de olhar o mundo. Sua experiência de ver abortara velharias.
Uma olhadinha, tudo bem, pelo menino. Isso consta dos manuais de boas mães. Olhar quando o filho pede. Foi lá, zanzou sob a videira, fingindo interesse, arregalava os olhos sem nada ver e gesticulava espanto. Seu pescoço doía, a lente a incomodava e o pequeno que pouco falava, mostrava com o dedinho em riste e sorria à mãe. O que vira, afinal? Quem veria? A “Tia” dissera a ela que seu filho subia várias vezes numa pequena escada para olhar, mas não fazia as continhas na lousa (era ruim de matemática) – para desgosto da mulher, o filho teria problemas na competição do mundo. (se houver um, né, caro leitor).
Por fim, quis ver pelas suas próprias pernas, subiu na escada verde e vermelha e alcançou o ninho de rolinhas. Ah, viu o que o pequeno vira! Desceu com uma ceninha de surpresa e de “agora já sei”:
- Ah, meu bem! Um ovo!
- Não, olha mamãe! Dois ovos.

sábado, 19 de novembro de 2011

O sequestro das velhinhas

Amigos, grato pelos inumeráveis acessos desta semana e pelos comentários sobre Pardal. Hoje posto um texto que compus ouvindo de uma amiga que tem uma fala bem viva com caretas e gestuais quando quer contar algo inusitado, peguei o gancho e escrevi o texto abaixo:

O sequestro das velhinhas


Na cidade pujante e de alguns pináculos e cruzes antigas duas velhinhas ainda saíam com suas bolsas e memórias, vagas e persistentes, àquelas horas da noite. Tinham assuntos que transbordavam à velhice e aos anos que lhes saíam pelo ladrão. Naquele trecho, mesmo próximo à igreja, várias velhinhas terminaram só com as alças das bolsas roubadas na mão. Era num atravessar de rua, no ponto de ônibus e o meliante agia sem escrúpulos, surrupiando idosas incautas com algum objeto cortante. Era o tempo de suspirar por mais uma perda e já era. A dupla de idosas se protegia com escapulários no pescoço e muito assunto em comum, falavam sem parar, o falar dava-lhes forças contra o medo e, assim mesmo, foram sequestradas duas vezes por engano e devolvidas no mesmo ponto – ali “um perigo”. Ruas escuras e escusas, de barracas de revistas em penumbras por onde zanzavam prostitutas e travestis e carros com sinais de faróis saíam atritando os pneus.
Após a missa festiva o padre fechava a igreja e se escondia no sacrário, apagando as luzes de fora. Com o “Vão em paz e que o Senhor vos acompanhe” os despedia, temendo o adiantado da hora e era cada um por si e as velhinhas por elas próprias. As duas corriam conforme velhos correm, meio cadentes, e chegavam a um telefone público para chamar o táxi.
Ana chama o carro, que vai parar no lugar combinado, de sempre, reconhece-o entre os fantasmas da catarata. Reconhecem? Às vezes uma convence o olhar da outra que mal vê o que pensa ter visto, como quando entraram no carro do sequestrador. “O carro, Ana”; “Já vou indo, Paula. O moço adivinhou e veio mais cedo. Que bom”.
Assim entraram porta adentro, fechando-as e travando, jogaram para trás algumas malas incômodas que ficaram no banco, e então se instalaram como passageiras e deram a ordem de partida. Mas qual? Deram por si e viam um estranho no volante a vigiá-las pelo retrovisor, não era o taxista, era um sequestro! Antes que pudessem gritar, entrou a cúmplice com um sorriso de esgar, e esta sim, deu ordem de partir ao motorista, talvez fosse a chefe da quadrilha. O rapaz era magro, moreno, alto e ela, alta, morena e de cabelos curtos, disseram depois no distrito, na presença do escrivão Marcos, que as interpelava:
- Mas se foi sequestro, por que deixaram as senhoras na porta de casa.
- Mas roubaram nossas sombrinhas, uma vermelha e outra verde, não é Ana?
- É.
- Mas, à noite, sombrinhas?..
- É que ia chover, moço. Fazíamos novena.
O casal acusado era paroquiano e foi trazido para esclarecimentos, trouxeram também as sombrinhas e as devolveram às velhinhas falantes:
- Viu, viu? Não falei? – O casal se manifestou:
- O padre nos mandou devolver.
- Ladra confessa, né?
- ... mas não arrependida, quando precisar de carona...

sábado, 12 de novembro de 2011

Pardal

Escrever sobre pardais é gostoso, eles vão aonde não podemos e podem conhecer o que não conhecemos, mundos dentro de outros mundos. Se for ao Japão lá estão os pardais. O pardacento que nos rememora a tristeza traz uma força própria, o de fazer o trabalho de hoje, o de ter a realidade mais presente e de repente a esperança que brota na asa de uma ave forte, robusta, profícua e de grande prole como os pardais. Assim, percorrendo os caminhos tortuosos da tristeza, da incompreensão humana encontraremos pardais, da família. Abraços a todos que adequam, por ora, suas visões à esta metáfora, somos todos pardais de alguma forma.

O blogueiro do último galho.

Eis o texto: ...
A enxurrada contínua escoa pelas valas. Protegida pela janela percebe a chuva lá fora a bater e escorrer no vidro. Os pingos caem como traços úmidos sobre o jardim em aquarela, nas folhas despetalando a ocre. O cimento suporta embebido, recostando colunas e vigas ao tronco lá embaixo.
É tempo de introspecção, de esperar, de deixar ir, mas não o filhote de pardal no parapeito. O ninho fora varrido pelo vento e ele ainda não sabia voar. Ficou acuado ali. Molhado o pobre com a pena erriçada, pequeno, bisonho, sem os penachos da cauda, sem leme de voo, desprotegido. A mão da menina não alcançou a ave temerosa que se arriscava na fuga da mão humana, à beira da queda.
Não há como salvá-lo, o pai fecha a janela, é só mais um pardal. A enxurrada cobre calçadas e os sons comezinhos na sala de família, a chuva amaina, perdura em pingos miúdos, mas o fluxo das águas pelos bueiros afora silencia a natureza. Inaudível o pipilar da ave em seu bico curto pelo vidro da janela fechada. Agora pode deambular trôpego, abrindo o bico mudo e, pior, pode cair naquele abismo de cimento armado. Ela não tira os olhos dele, a TV não chama a sua atenção, mas o mísero pardal sim. Ele não a vê, só pia.
Quando o pai percebeu o vento frio correu à janela aberta, a menina pegou o pássaro, o pai pegou-lhe o tornozelo e um resfriado. A filha pagou com o castigo sua ousadia e o pardal a seus cuidados fugiu pela janela mesmo depois, são e a salvo, voou.
A ave se foi, mas a menina aprendeu a cantarolar como ele. A bicada na língua lhe despertou o gosto musical das aves. Para, menina - reclamava o pai vendo-a o dia todo a assoviar pela casa a canção do seu pardal.
Saem a passeio pela praça ela e o pai, este tem os olhos vermelhos e assoa o nariz, entre um espirro e outro. A menina não olha para baixo mais, quer ver pássaros e todos são comuns ali, pardais. Pelo chafariz da praça o jato de água borrifa alto e ela ri a respingos. Algumas aves se molham no lago artificial e enxugam as penas com o bico, abrindo-as como leque. Mas vê lá! No chafariz elas podem lavar o bumbumzinho do alto - grita a imaginosa garota - de tanto ver o mundo do alto do apartamento pensa como pássaro.
As chuvas foram-se no mormaço da tarde anterior, de manhã já se veem os pardais em bandos, sobre fios e muros, em algazarra. Ninguém nota os pardacentos, pássaros comuns que atacam hortas e pousam sobre calhas, edifícios, brigam com cachorros e evadem num voo ligeiro, mas no pardal da menina havia um sentimento. Era diferente de todos os outros e, qual deles era? A menina nunca mais deixou de olhar os pardais, nem o parapeito da janela, onde sempre depositava uma migalha que a mãe tinha de limpar, repreendendo-a, mas como explicar aquela oferenda tida por descuido a quem tanto cuidado tivera. Os assovios tidos como masculino e de mau gosto, era o que sabia falar na língua dos pássaros. Por fim, desenganaram-na, era uma criança sensível. Gostar de pardais!
Homenagem a todas as pessoas que gostam de coisas comuns e à minha Luzia.
Obs: Aos interessados em presentear no Natal com livro, ainda temos O Seminário, romance moderno de mexer com os neurônios - se for para amigo não dê não, mas se for para irmão, cunhado, sogra, tio velho, ex-seminaristas que só falam papo-cabeça, você vai ter um tempinho de sossego, rsrsrs. Contate-nos pelo e-mail quartarollo.camilo@gmail.com

sábado, 5 de novembro de 2011



Queimando os dedos
“És pó e em pó hás de tornar”, esta é a oração na quarta-feira de cinzas nos templos católicos, depois das noites puladas de purpurinas e alegria liberal ou libertina, um freio do cotidiano. O ser humano sempre busca fugir ao fatal momento, o de tornar-se novamente em pó, esfarelar-se na memória suja de um chão anônimo, de muitos dormentes, sem saber o que acontece lá em cima, dizem que a alma sobe, outras ficam no pó de sua essência, talvez como a deste cronista.
Como pedestre vejo os fumantes de calçada, expulsos pelas placas de recintos salubres e de ar-condicionado. Alguns cumprimentam, mas a maioria está absorta, num gesto clássico do fumar, dos fumus boni juris, de quando isso era apenas uma rebeldia a que se dão ao direito. Expiram a fumaça que sobe aos deuses, para atingir alguns arranha-céus, os olhos acompanham alguma coisa, que somente eles veem. A fumaça é apenas um detalhe, a nicotina um combustível dos pensamentos, os gases tóxicos, a amônia, o sabor artificial posto pela indústria vai junto, mas o que importa mesmo é que a finitude está bem perto, pode pegar a morte com os dedos e olhar para a ponta da brasa – “esta é minha”.
O temor que se tem não é o da morte, mas o do não-ser, já diz a filosofia. No cigarro tem-se uma ideia, como se ele fosse o corpo do fumante. Lembro o cheiro e os dedos do meu tio, amarelos de fumar, e quando soltava a fumaça pelas narinas num ar de quem fizera mais um trabalho e regurgitava um ressonar em vigília, concluíra mais um pensamento sobre a vida ou sobre seus momentos, estes que ficavam, enquanto mandava a fumaça fora.Tem os fumantes nervosos, que puxam com raiva – estes não nos veem; há os que ostentam ou põe de lado o cilindro queimado para cumprimentar. Os que jogam fora o cigarro inteiro, numa autorreprovação. Há os filósofos, que cientes do mal, ornamentam seu anestésico de solidão, aí entram as formas sofisticadas do vício, não as de um fumante qualquer – estes têm os charutos, cachimbos curvos para baixo tipo Sherlock Holmes – de ver a fumacinha passar e reutilizar a fumaça aromática, cigarros com piteiras douradas de lordes, charutos cubanos com rebeldia de gabinete, sem endurecer-se. Verdade que muitos fumantes começaram como caça-baganas na rodoviária ou no colo de algum parente. Eu não. Meu tio começou com essa ideia de nos iniciar no vício e meu pai não deu mole, o impediu. Grande papai. Verdade é que uma vez no caminho da escola vi um charutão enorme, pretão, de fumo forte, pensei - não uma bituquinha qualquer - mas ao chegar perto e já o saboreando com os olhos, vi um cachorro que saiu correndo – pois é! Não era charuto não.