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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

domingo, 25 de janeiro de 2009

Publicado em 05/09/08 na tribuna Piracicabana
(Breve apanhado sobre a peça do grupo Andaime)

Antonio Chapéu (que volta aos palcos, como ator, sempre), Márcio Abegão, Bruno Agulhari, Maria Trevisan, Barbosa Neto, Jonathas Beck e Charles Mariano. Na parte técnica, Jonathas Beck toca as músicas ao vivo e Luzia Vaz opera a luz. Aqui coube o nome de todos. Na publicação do TP, coloquei os nomes dos atores em parentesis, mas para adaptar aos números de caracteres tive de omitir o da iluminadora, que por sinal é muito iluminada.)

Patacoadas de Cornélio Pires

Encontrei-os em sua vidinha – senti-me o próprio Cornélio Pires. Trajados a costume, as pernas das calças enrodilhadas no tornozelo, com “as mão no jueio e um cumprimento respeitoso”, ficavam “iscuitano causo ou oiano im vorta”. “Inté” parecia um domingo de tardinha e que coisa interessante! Numa venda da vila cheirando a pinga e a café de coador, todo mundo se reunia ali, uma viola, uma moda daqui, uma prosa pra acolá. Parece que o tempo parou nas sombras que vão descendo o espigão e o caipira sabe mesmo esticar o dia, jogando baralho, cantando, proseando ou mesmo calado como aquele caipira mulato do canto (Antonio Chapéu), picando tranqüilo o fumo de corda, sério, atento aos causos, caipira é homem de respeito. Outro “cascando” laranja, “assuntando” com o “zóio” as provocações do sobrinho (Bruno Agulhari) da cidade (mai o que cê tá fazeno aqui?), cujo “objeto de estudo” para faculdade é o caipira, “óia esse daqui, parece de cera, meu!”. Juca Morera (Márcio Abegão), sabe se desvencilhar de ardis intelectuais, “faiz o cê memo, ô,ô cê sabe fazê!”, com a naturalidade de seus gestuais caipiras. “Saci...exiiste...passô um aqui agorinha”. Juca Morera mostra com sua eloqüência o pavor que um saci causa aos animais domésticos, galinhas e cavalos. Admira-se o jovem que saci, "com necessidade especial”, anda saltando com uma perna só, assusta e monta os cavalos pela noite afora e ainda faz trança na crina deles. O sobrinho pede uma imitação de passarinho ao tio e começam os trinados e assobios à imitação de aves, sapos e grilos, até o caipira mulato e sisudo afina a voz para imitar galinha d’angola. Esse caipira mulato é mais misterioso, desconfiado, mas quando pega na viola canta apaixonado. Cornélio não o perderia por nada. Os poemas de Cornélio declamados e cantados com expressão dramática e por vezes, despercebida a um leitor apressado.
Se não pode achegar-se à amada (Maria Trevisan), cheia de recatos, segue-a respeitosamente pela igreja, senta onde sentou, cheira o seu cheiro e deixa-lhe um beijo na fitinha de sua devoção, com amor e fé, tendo ele completado o ato de amor idílico, à espreita dela de “zóio espichado” em sua performance como dança de acasalamento, foge sem mais. Há uma promessa?
Jogo de baralho. Atenção em volta da mesa. Gestos, truques, tossidas, cuspidas perigosas – é bom os curiosos saírem de lado! No final do jogo, cada um canta a vitória com seu mote, mas um vai batendo outro com sua carta, até o ganhador final.
Os causos, se mentiras são, não prejudicam a ninguém. Um caipira (Charles Mariano) “viu” oito irara, caça raríssima...outro caipira (Barbosa Neto) contesta. O macaco do circo subiu no poste e trouxe o povo para fora. Como fazê-lo descer para o circo? Macaco gosta de quê, compadre? O cururu se inicia entre uma pinga e outra, o dono da venda acompanha e no refrão “oilarilarilarai” o cantador vai pensando na resposta inusitada e em rima, que a platéia ovaciona.
A tempestade na escuridão assusta na noite de “guardamento de defunto”. Os causos de medo arrepiam. Os entes folclóricos assumem vida própria nos olhos, caretas e pronúncias desses brasileiros, à luz de velas.
A peça é um espetáculo numa estripulia musical (Jonathas Beck) ao longo da apresentação, que repercute nas tardes quentes e em noites enluaradas ou tenebrosas do sertão de casebres e da venda à beira da estrada, “onde os vi e me vi”. (Direção de Luis Carlos Laranjeiras)

“Merda" Merda”!

Contentava-me em sentar-me nos primeiros lugares sem pagar ingresso. Em princípio apaixonei-me pelas personagens, pelo figurino e pelos gestos tão precisos e preciosos de cada um, quis conhecê-los, como muitos expectadores. Comecei a acompanhar o grupo e a assistir a todas as apresentações, sempre esperando a aparição das personagens com suas falas. Por vezes, a personagem deixava transparecer a consciência além de si e via um detalhe, percebera pelos olhos do ator um fato diferente, fizera uma homenagem ou brincadeira numa palavra. Começava a peça, eu não conhecia mais os atores. Com dadivosa generosidade emprestavam os olhos, as lágrimas e o corpo à sua personagem, numa relação íntima. Quase nem à minha esposa atriz conseguia ver dentro da constituição de sua personagem, ainda que a procurasse no canto dos seus olhos. O público e ela um devoto comprometido com a festa e seus festeiros. Meu coração iria checar depois se me amava ainda.
Outra apresentação na agenda. Ônibus, cenário e figurino pela estrada. Lá vão pela estrada, as cenas repassadas, as cantorias da peça. Os artistas, descontraídos, carregam as roupas das suas personagens, felizes em reencontrá-las. A arte é vida transformada. Lá uma cidadezinha pequena, um pequeno teatro. Descer e arrumar o cenário, adereços e figurinos.
Chamaram-me para “dar uma força”. Descasque as espigas de milho para a cena da família, põe a cana e o facão para a cena dos cortadores de cana, passe o terno do Quin e a roupa do devoto, puxa o barco do Nerso daí, joga os chapéus naquele canto. Fulano já chegou? Não, ele vem de carona, o Diretor vai vir?
Tudo ali misturado, atores, cenário, roupas, figurinos, atores, rotunda enorme movida por roldanas, sombras, personagens e eu lá e cá, às voltas com aquele ambiente de um vai e vem. Um sorriso, uma piada, um oi de alguém que já me vira e conhecia a minha atriz-esposa, outro que me confundia com outrem. O cenário já posto em teste de foco e de luz vermelha, verde, âmbar, noite, dia, provindas de refletores enormes de luz de chão, cruzada, de fundo, de pino. Ia sair no final para aguardar o espetáculo na platéia, seguraram-me, deram-me um boné, uma roupa branca para figurante na procissão do divino. Não era ator, nem tinha formação alguma nessa arte, mas para figurante servia.
Na hora da apresentação todo o caos da coxia se arrumou como que por encanto, num mutirão sem líder. Os atores já incorporaram as personagens literalmente, debaixo camadas de roupas, da primeira a última personagem interpretada. Os atores acorrem para junto do círculo, misturam-se às outras mãos que balançam para cima e para baixo, no centro, numa onda uníssona e crescente de entusiasmo e energia para espantar qualquer azar:...vai, vai, vai, úi, úi, úi... ãn...ãn...Andaime!!! As palavras são como que apenas sons, uma glossolalia, como o cumprimento que só se percebe o sentido quando se recebe: Merda. Merda?! Nada menos que isso que ouvi daquelas caras e bocas sorridentes e alegres como crianças, que me abraçavam e apertavam-me, dali fluindo intenso amor e gratuidade.
Sai de marinheiro, após a “merda”. Ao lado de minha esposa caracterizada de homem e – que escândalo! – beijou-me. Fiquei vermelho sem maquiagem. Nem percebera que a porta não se abrira ainda. Saímos para a rua, os festeiros soltaram os rojões e fomos aos pares cantando “pá agradecê o divino”. Cantei, cantei e imitei os cantadores e a mim mesmo e enfim, descobri que era um caipira de verdade e de mentira. Na entrada do teatro o público, adultos, crianças, mulheres, homens, idosos, olhares de simpatia, carinho, solidariedade, incredulidade e até algum deboche pela nossa “verdade dramática”. Seguimos a bandeira do divino, acenando ao público de caras e carrancas que foram se soltando e percebendo o foco do evento, uma realidade interior pela representação exterior que acaba por consumir esta. Entramos cantando até o palco e o povo nos seguia, assentando-se nas poltronas. No palco, as músicas e danças como a Catira e a Congada; a festa, alguns tropeços de encenação imperceptíveis ao público, tudo é festa, em meio à pipoca e à euforia dos cantadores e devotos, que cantam com devoção e alegria, sem se importarem pela métrica das partituras, caipiras que são, cantam de cor, como os pássaros em poleiros.
Beijei a bandeira do divino e em meio à festa, fui o primeiro a me retirar. O festeiro ia dormir? Ele sim, eu entrei pela coxia, troquei de roupa e fiquei aguardando a peça de lá, olhando de soslaio a reação do público que não me via. Lá fiquei “dando uma força” e tentando não atrapalhar o trânsito dos atores, a troca das personagens, nas penumbras do transitório, “a fuga” por trás da rotunda, a entrada pelo lado oposto do mesmo ator e de outra personagem. Era como adão vendo a criação de um mundo, do meu próprio e do público, só que estava vendo por dentro. A montagem do céu, da terra e do rio que engolira pescadores e ia devorar aos olhos da platéia o adolescente Denirso.
O jovem saiu na luz, caracterizado, tentando acender um cigarro roubado de seu pai, no luar da mata puxava o fogo como vaga-lume para acender o objeto de sua transgressão. O cigarro de “paia”. Assim feito, sentou-se à “margem do rio” (platéia) e deu algumas baforadas e tossidas. Depois de alguns segundos de olhar para o nada em meio à platéia, começou a Fala dele. Na noite enluarada, ouvem-se os cantar de grilos, pássaros e animais da mata e dois cachorros que ladram para ele, o interrompem e o atormentam. Na coxia, vejo o mundo representativo dessa fauna toda. Imitações características, cada um faz um animal bem a seu jeito. Têm de se espremer, arregalar os olhos, se contorcer, forçar o abdômen, para fazer o que os animais fazem naturalmente; mas os atores se superam nesses sons onomatopaicos, numa consciência humana que se aproxima da cósmica. Percebo-os num estado alterado de consciência. É divertido e cômico aquelas “vozes” imitando galinhas soltas no terreiro, patos, macacos, corujas escondidas sobre o toco, cachorros ameaçadores e o bom burro que assopra na cocheira, todos com personalidade própria: “imito a galinha da minha mãe”, “eu tinha um cachorro que latia assim”, “lá no sítio a coruja fazia assim, em cima do mourão, eu gosto de coruja”, “o burro é uma gracinha”.
Em meio às penumbras da coxia, quase que podia ver os ditos animais, aos quais muitas vezes ouvira da platéia daquela “noite no mato”.
(“The End”)