
“Merda" Merda”!
Contentava-me em sentar-me nos primeiros lugares sem pagar ingresso. Em princípio apaixonei-me pelas personagens, pelo figurino e pelos gestos tão precisos e preciosos de cada um, quis conhecê-los, como muitos expectadores. Comecei a acompanhar o grupo e a assistir a todas as apresentações, sempre esperando a aparição das personagens com suas falas. Por vezes, a personagem deixava transparecer a consciência além de si e via um detalhe, percebera pelos olhos do ator um fato diferente, fizera uma homenagem ou brincadeira numa palavra. Começava a peça, eu não conhecia mais os atores. Com dadivosa generosidade emprestavam os olhos, as lágrimas e o corpo à sua personagem, numa relação íntima. Quase nem à minha esposa atriz conseguia ver dentro da constituição de sua personagem, ainda que a procurasse no canto dos seus olhos. O público e ela um devoto comprometido com a festa e seus festeiros. Meu coração iria checar depois se me amava ainda.
Outra apresentação na agenda. Ônibus, cenário e figurino pela estrada. Lá vão pela estrada, as cenas repassadas, as cantorias da peça. Os artistas, descontraídos, carregam as roupas das suas personagens, felizes em reencontrá-las. A arte é vida transformada. Lá uma cidadezinha pequena, um pequeno teatro. Descer e arrumar o cenário, adereços e figurinos.
Chamaram-me para “dar uma força”. Descasque as espigas de milho para a cena da família, põe a cana e o facão para a cena dos cortadores de cana, passe o terno do Quin e a roupa do devoto, puxa o barco do Nerso daí, joga os chapéus naquele canto. Fulano já chegou? Não, ele vem de carona, o Diretor vai vir?
Tudo ali misturado, atores, cenário, roupas, figurinos, atores, rotunda enorme movida por roldanas, sombras, personagens e eu lá e cá, às voltas com aquele ambiente de um vai e vem. Um sorriso, uma piada, um oi de alguém que já me vira e conhecia a minha atriz-esposa, outro que me confundia com outrem. O cenário já posto em teste de foco e de luz vermelha, verde, âmbar, noite, dia, provindas de refletores enormes de luz de chão, cruzada, de fundo, de pino. Ia sair no final para aguardar o espetáculo na platéia, seguraram-me, deram-me um boné, uma roupa branca para figurante na procissão do divino. Não era ator, nem tinha formação alguma nessa arte, mas para figurante servia.
Na hora da apresentação todo o caos da coxia se arrumou como que por encanto, num mutirão sem líder. Os atores já incorporaram as personagens literalmente, debaixo camadas de roupas, da primeira a última personagem interpretada. Os atores acorrem para junto do círculo, misturam-se às outras mãos que balançam para cima e para baixo, no centro, numa onda uníssona e crescente de entusiasmo e energia para espantar qualquer azar:...vai, vai, vai, úi, úi, úi... ãn...ãn...Andaime!!! As palavras são como que apenas sons, uma glossolalia, como o cumprimento que só se percebe o sentido quando se recebe: Merda. Merda?! Nada menos que isso que ouvi daquelas caras e bocas sorridentes e alegres como crianças, que me abraçavam e apertavam-me, dali fluindo intenso amor e gratuidade.
Sai de marinheiro, após a “merda”. Ao lado de minha esposa caracterizada de homem e – que escândalo! – beijou-me. Fiquei vermelho sem maquiagem. Nem percebera que a porta não se abrira ainda. Saímos para a rua, os festeiros soltaram os rojões e fomos aos pares cantando “pá agradecê o divino”. Cantei, cantei e imitei os cantadores e a mim mesmo e enfim, descobri que era um caipira de verdade e de mentira. Na entrada do teatro o público, adultos, crianças, mulheres, homens, idosos, olhares de simpatia, carinho, solidariedade, incredulidade e até algum deboche pela nossa “verdade dramática”. Seguimos a bandeira do divino, acenando ao público de caras e carrancas que foram se soltando e percebendo o foco do evento, uma realidade interior pela representação exterior que acaba por consumir esta. Entramos cantando até o palco e o povo nos seguia, assentando-se nas poltronas. No palco, as músicas e danças como a Catira e a Congada; a festa, alguns tropeços de encenação imperceptíveis ao público, tudo é festa, em meio à pipoca e à euforia dos cantadores e devotos, que cantam com devoção e alegria, sem se importarem pela métrica das partituras, caipiras que são, cantam de cor, como os pássaros em poleiros.
Beijei a bandeira do divino e em meio à festa, fui o primeiro a me retirar. O festeiro ia dormir? Ele sim, eu entrei pela coxia, troquei de roupa e fiquei aguardando a peça de lá, olhando de soslaio a reação do público que não me via. Lá fiquei “dando uma força” e tentando não atrapalhar o trânsito dos atores, a troca das personagens, nas penumbras do transitório, “a fuga” por trás da rotunda, a entrada pelo lado oposto do mesmo ator e de outra personagem. Era como adão vendo a criação de um mundo, do meu próprio e do público, só que estava vendo por dentro. A montagem do céu, da terra e do rio que engolira pescadores e ia devorar aos olhos da platéia o adolescente Denirso.
O jovem saiu na luz, caracterizado, tentando acender um cigarro roubado de seu pai, no luar da mata puxava o fogo como vaga-lume para acender o objeto de sua transgressão. O cigarro de “paia”. Assim feito, sentou-se à “margem do rio” (platéia) e deu algumas baforadas e tossidas. Depois de alguns segundos de olhar para o nada em meio à platéia, começou a Fala dele. Na noite enluarada, ouvem-se os cantar de grilos, pássaros e animais da mata e dois cachorros que ladram para ele, o interrompem e o atormentam. Na coxia, vejo o mundo representativo dessa fauna toda. Imitações características, cada um faz um animal bem a seu jeito. Têm de se espremer, arregalar os olhos, se contorcer, forçar o abdômen, para fazer o que os animais fazem naturalmente; mas os atores se superam nesses sons onomatopaicos, numa consciência humana que se aproxima da cósmica. Percebo-os num estado alterado de consciência. É divertido e cômico aquelas “vozes” imitando galinhas soltas no terreiro, patos, macacos, corujas escondidas sobre o toco, cachorros ameaçadores e o bom burro que assopra na cocheira, todos com personalidade própria: “imito a galinha da minha mãe”, “eu tinha um cachorro que latia assim”, “lá no sítio a coruja fazia assim, em cima do mourão, eu gosto de coruja”, “o burro é uma gracinha”.
Em meio às penumbras da coxia, quase que podia ver os ditos animais, aos quais muitas vezes ouvira da platéia daquela “noite no mato”.
(“The End”)
Camilo, Camilo... em mais esse texto há a doce expressão da sua admiração pela Luzia e forçosamente abro-lhe o coração, conhecendo um pouquinho de vocês, emocionou-me lê-lo (cheguei a ter um nó bom na garganta, quase ruim e uma lágrima no canto do olho direito. Inevitavelmente fiquei FELIZ pela confirmação da certeira junção do "ela e ele" que a relação de vocês faz e por fim, ficou ecoando na minha cabeça a desenvolta atriz-esposa imitando, na cozinha da Tetê, com maestria de gênio, um barulhento macaco. Beijos pra vocês!!!
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