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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

domingo, 25 de janeiro de 2009


“Merda" Merda”!

Contentava-me em sentar-me nos primeiros lugares sem pagar ingresso. Em princípio apaixonei-me pelas personagens, pelo figurino e pelos gestos tão precisos e preciosos de cada um, quis conhecê-los, como muitos expectadores. Comecei a acompanhar o grupo e a assistir a todas as apresentações, sempre esperando a aparição das personagens com suas falas. Por vezes, a personagem deixava transparecer a consciência além de si e via um detalhe, percebera pelos olhos do ator um fato diferente, fizera uma homenagem ou brincadeira numa palavra. Começava a peça, eu não conhecia mais os atores. Com dadivosa generosidade emprestavam os olhos, as lágrimas e o corpo à sua personagem, numa relação íntima. Quase nem à minha esposa atriz conseguia ver dentro da constituição de sua personagem, ainda que a procurasse no canto dos seus olhos. O público e ela um devoto comprometido com a festa e seus festeiros. Meu coração iria checar depois se me amava ainda.
Outra apresentação na agenda. Ônibus, cenário e figurino pela estrada. Lá vão pela estrada, as cenas repassadas, as cantorias da peça. Os artistas, descontraídos, carregam as roupas das suas personagens, felizes em reencontrá-las. A arte é vida transformada. Lá uma cidadezinha pequena, um pequeno teatro. Descer e arrumar o cenário, adereços e figurinos.
Chamaram-me para “dar uma força”. Descasque as espigas de milho para a cena da família, põe a cana e o facão para a cena dos cortadores de cana, passe o terno do Quin e a roupa do devoto, puxa o barco do Nerso daí, joga os chapéus naquele canto. Fulano já chegou? Não, ele vem de carona, o Diretor vai vir?
Tudo ali misturado, atores, cenário, roupas, figurinos, atores, rotunda enorme movida por roldanas, sombras, personagens e eu lá e cá, às voltas com aquele ambiente de um vai e vem. Um sorriso, uma piada, um oi de alguém que já me vira e conhecia a minha atriz-esposa, outro que me confundia com outrem. O cenário já posto em teste de foco e de luz vermelha, verde, âmbar, noite, dia, provindas de refletores enormes de luz de chão, cruzada, de fundo, de pino. Ia sair no final para aguardar o espetáculo na platéia, seguraram-me, deram-me um boné, uma roupa branca para figurante na procissão do divino. Não era ator, nem tinha formação alguma nessa arte, mas para figurante servia.
Na hora da apresentação todo o caos da coxia se arrumou como que por encanto, num mutirão sem líder. Os atores já incorporaram as personagens literalmente, debaixo camadas de roupas, da primeira a última personagem interpretada. Os atores acorrem para junto do círculo, misturam-se às outras mãos que balançam para cima e para baixo, no centro, numa onda uníssona e crescente de entusiasmo e energia para espantar qualquer azar:...vai, vai, vai, úi, úi, úi... ãn...ãn...Andaime!!! As palavras são como que apenas sons, uma glossolalia, como o cumprimento que só se percebe o sentido quando se recebe: Merda. Merda?! Nada menos que isso que ouvi daquelas caras e bocas sorridentes e alegres como crianças, que me abraçavam e apertavam-me, dali fluindo intenso amor e gratuidade.
Sai de marinheiro, após a “merda”. Ao lado de minha esposa caracterizada de homem e – que escândalo! – beijou-me. Fiquei vermelho sem maquiagem. Nem percebera que a porta não se abrira ainda. Saímos para a rua, os festeiros soltaram os rojões e fomos aos pares cantando “pá agradecê o divino”. Cantei, cantei e imitei os cantadores e a mim mesmo e enfim, descobri que era um caipira de verdade e de mentira. Na entrada do teatro o público, adultos, crianças, mulheres, homens, idosos, olhares de simpatia, carinho, solidariedade, incredulidade e até algum deboche pela nossa “verdade dramática”. Seguimos a bandeira do divino, acenando ao público de caras e carrancas que foram se soltando e percebendo o foco do evento, uma realidade interior pela representação exterior que acaba por consumir esta. Entramos cantando até o palco e o povo nos seguia, assentando-se nas poltronas. No palco, as músicas e danças como a Catira e a Congada; a festa, alguns tropeços de encenação imperceptíveis ao público, tudo é festa, em meio à pipoca e à euforia dos cantadores e devotos, que cantam com devoção e alegria, sem se importarem pela métrica das partituras, caipiras que são, cantam de cor, como os pássaros em poleiros.
Beijei a bandeira do divino e em meio à festa, fui o primeiro a me retirar. O festeiro ia dormir? Ele sim, eu entrei pela coxia, troquei de roupa e fiquei aguardando a peça de lá, olhando de soslaio a reação do público que não me via. Lá fiquei “dando uma força” e tentando não atrapalhar o trânsito dos atores, a troca das personagens, nas penumbras do transitório, “a fuga” por trás da rotunda, a entrada pelo lado oposto do mesmo ator e de outra personagem. Era como adão vendo a criação de um mundo, do meu próprio e do público, só que estava vendo por dentro. A montagem do céu, da terra e do rio que engolira pescadores e ia devorar aos olhos da platéia o adolescente Denirso.
O jovem saiu na luz, caracterizado, tentando acender um cigarro roubado de seu pai, no luar da mata puxava o fogo como vaga-lume para acender o objeto de sua transgressão. O cigarro de “paia”. Assim feito, sentou-se à “margem do rio” (platéia) e deu algumas baforadas e tossidas. Depois de alguns segundos de olhar para o nada em meio à platéia, começou a Fala dele. Na noite enluarada, ouvem-se os cantar de grilos, pássaros e animais da mata e dois cachorros que ladram para ele, o interrompem e o atormentam. Na coxia, vejo o mundo representativo dessa fauna toda. Imitações características, cada um faz um animal bem a seu jeito. Têm de se espremer, arregalar os olhos, se contorcer, forçar o abdômen, para fazer o que os animais fazem naturalmente; mas os atores se superam nesses sons onomatopaicos, numa consciência humana que se aproxima da cósmica. Percebo-os num estado alterado de consciência. É divertido e cômico aquelas “vozes” imitando galinhas soltas no terreiro, patos, macacos, corujas escondidas sobre o toco, cachorros ameaçadores e o bom burro que assopra na cocheira, todos com personalidade própria: “imito a galinha da minha mãe”, “eu tinha um cachorro que latia assim”, “lá no sítio a coruja fazia assim, em cima do mourão, eu gosto de coruja”, “o burro é uma gracinha”.
Em meio às penumbras da coxia, quase que podia ver os ditos animais, aos quais muitas vezes ouvira da platéia daquela “noite no mato”.
(“The End”)

Um comentário:

  1. Camilo, Camilo... em mais esse texto há a doce expressão da sua admiração pela Luzia e forçosamente abro-lhe o coração, conhecendo um pouquinho de vocês, emocionou-me lê-lo (cheguei a ter um nó bom na garganta, quase ruim e uma lágrima no canto do olho direito. Inevitavelmente fiquei FELIZ pela confirmação da certeira junção do "ela e ele" que a relação de vocês faz e por fim, ficou ecoando na minha cabeça a desenvolta atriz-esposa imitando, na cozinha da Tetê, com maestria de gênio, um barulhento macaco. Beijos pra vocês!!!

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