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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sábado, 1 de setembro de 2012

Amigos, grato pelos acessos a este blog e pelas leituras deste indigno cronista. Neste sábado posto uma crônica brincalhona que um amigo me contou, ocorrido em sua cidade, a despeito da descrença. Aos interessados que não leram, temos exemplares de As ciladas do Androide, é só contactar-nos pelo e-mail camilo.i@ig.com.br Vamos ao texto:
Galinha preta
“Tomé, alma de morto é uma galinha preta cega” e ele ria, desdenhando da pobre velha com suas velas, orações caseiras e mandingas.
Tomé era descrente de fé – dizia a sogra. Para ele tudo tinha de ser explicadinho por um fenômeno causal.
Ainda caipira de pé pranchado, respirava o determinismo apreendido pelo senso comum.  
Aos domingos ia à casa da sogra almoçar com a família e sentava-se à porta da cozinha entretendo-se com as conversas da velha, enquanto as galinhas ciscavam pelo terreiro.
“Fio, tome tento, fé é que nem mio que se dá pas galinha. Nasce na roça, não da cabeça de ninguém”.  À noitinha as galinhas se recolhiam amiúde, e a velha, depois de conferir todas nos poleiros fechava a portinhola à escuridão dos galináceos. Então ia para cama dormir, como se diz por lá, “com as galinhas”, bem cedo. O genro, filha e netos voltavam a casa deles, vizinhos de cerca.
Dormia cedo e acordava com o primeiro cantar do galo, mas não naquele dia. Na sua passagem a tramela da porta foi aberta com um leve toque do anjo ceifeiro, chamando sua alma às alturas. A velha morreu de uma morte líquida e certa, estava na idade e incomodava. O dia ameaçou chuva, mas conteve-se em luto. O guardamento da defunta foi à noite como manda o costume por aquelas bandas.
Tomé veio com a família e mandou chamar vizinhos, ansiando em aliviar-se dessa obrigação piedosa e incômoda, guardar defuntos! Enquanto as galinhas dormiam ao lado do paiol de milho. Galinha de sítio é dorminhoca. A noite do guardamento era clareada somente pelas quatro velas do caixão e alguns lampiões embaçados para evitar tropeços dentro da casa ao estilo fúnebre. De pouca luz e de penumbras, figuras alongadas e pouco falar e choros e medos escondidos. Cada um que chegava o lamento e o “ela era tão boa...”. Tomé trazia um café e convidava com o “sente, compadre, comadre” e dirigia um olhar tristonho e conformado.
A memória da falecida, seus costumes. O povo ia descontraindo com o café quente e a polenta assada, Tomé deu-se à liberdade de contar algumas anedotas para animar e foi graça recíproca, risadas desafogadas. Todavia, à meia-noite, em meio ao bruxulear das velas e dos lampiões de tênue iluminação, uma coisa caiu pelo desvão da casa bem no colo de Tomé, saltou sobre o caixão da defunta e cacarejava com as asas abertas, causando enorme alvoroço na casa. Galinha acordada àquelas horas! Dentro, só permaneceram a morta jacente e a galinha preta de vigia. O Tomé está correndo até hoje.
Foi lá pelas bandas de Mombuca e pergunte ao Cláudio, se é mentira.
Grato à Tribuna Piracicabana pela publicação.

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