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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sábado, 21 de março de 2009





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Sons

Perto da casa de meu avô passava o trem. Certa vez dois homens foram atropelados ao atravessar a linha, a noite. Meus tios foram ver o acontecido. Nós crianças fomos privados da visão horrenda. Dava, contudo, para se ver da casa, um monstro comprido, parado com um holofote aceso e um aglomerado de gente em volta. Quando voltaram diziam que os mortos eram assim, trabalhavam não sei onde e quiseram cortar volta, porque iam fazer não sei o que. Dois desconhecidos que comecei a ver na rua, no rosto de outras pessoas, todos começaram a ter as caras dos mortos. Às vezes, estávamos jantando e ouvíamos o apito, dava para se ver aquele monstro vindo, soltando fumaça e se ficássemos quietos ele passava. Os apitos eram cada vez mais próximos, mas estava passando já, ia-se. Os trilhos eram um tabu, perigosos.
Outro som que ouvíamos era o do sino do cemitério, cada vez que chegava um corpo para enterro. O coveiro ficava postado embaixo dele e puxava a corda do badalo, que parecia um martelinho chato o seu som. Parecia que tocava sempre a tarde, quando o sol ia se pôr, o que dava mais tristeza. Sabíamos o que era enterro. Este ato nós acompanhávamos mesmo na tenra idade. Era um ato religioso, um dos atos de misericórdia do catecismo romano. Enterrar os mortos. Mortos que nunca enterrávamos, porque a cada badalo que se ouvia de casa, aquele comentário da minha mãe: hum, mais um que se vai, coitado. Imaginava esses mortos, era o que mais eu fazia, até meus brinquedos eram imaginários de tão escassos e de quebrá-los para ver como foram feitos, acabando por destruí-los. Quem seriam aquelas entidades? Mortos para nós eram pessoas, que tinham certo poder. Sem corpos, almas, fantasmas. Velhos, os velhos morriam. Se fosse criança virava anjo. Mas aquele som do sino do cemitério prendia-nos por uma emoção estranha da morte de outrem.
O sino da igreja era um sino diferente, que ressoava. Era um sinal de domingo, de festa. De obrigação somente a missa e depois algum parente vinha nos visitar, ouvíamos a prosa dos adultos, éramos os coadjuvantes mais participativos. A lei do “primeiro os mais velhos”.Então sentávamos a mesa e após as visitas servirem-se, fazíamos o nosso prato com macarronada e suculenta mistura. Era um dia de graça, ninguém batia no filho na frente do hospede. Era bom o domingo, mesmo que as segundas-feiras fossem cinzentas, restavam um pouco do calor do dia santo.
O tempo passou e hoje o som de moto com o escapamento aberto e aquele som do caminhão do gás...Um Beethoven mal tocado, escorrido pelo ouvido como cera. Credo. E meu Deus, pour Elise, os cachorros, que tem audição mais aguçada, não suportam! Talvez sintam como o apito do trem ou o som do martelinho do cemitério. Latem sem parar, assustados. Será que vale o preço de um botijão?
(Texto publicado na Tribuna Piracicabana em 21/03/09)

5 comentários:

  1. A morte é um assunto que sempre nos causa uma certa estranheza. Faz nossa cabeça refletir. Estou ouvindo Tom Waits neste momento e não por pour Elise. A música aqui combinou muito com o teu texto. Que por sinal comovente. Abraço

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  2. O texto tem tudo haver com a famíkia italiana! macaronada! Me faz lembrar de minha infancia!
    Abraço!
    Sandra Vacchi

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  3. Eu viajei junto com você nessa história...você é um ótimo roteirista! Assim como a Sandra, alguns trechos me levou ao passado, afinal sou descendente de italianos!
    Ivana.

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  4. Não me recordo quando os caminhões de distribuição de gás de cozinha passaram a "berrar" algumas músicas clássicas, só sei que depois da primeira semana já tinha "garrado um ódio" daquelas maravilhosas composições. É isso, entre remédio e veneno há uma linha bem tenue. Beijos.

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  5. Puxa falar em trem lembro da Cia Paulista que passava na linha perto do bairro Pombéia...da minha casa ouvia o som....
    Sandra Vacchi
    Parabén pelo texto!

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