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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sábado, 7 de março de 2009

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Dapho

Lê-se a inscrição DAPHO no cocho antigo de comida junto à porta. Velho e comilão, a cheirar o vento, a ver o dono sentado e culturalmente acondicionado em sua mesa. Causídico ilustre no meio de muitos volumes de processos pendentes. A pendência e os prazos é o que mais domina o mundo dos humanos. Inventaram o relógio para contar o tempo que não podem controlar. Fazem projetos, lembretes, intenções e no fim tudo termina num inventário volumoso ou até em autopsia, a desgosto do morto.
Dafo (pronuncia-se assim) olha, por vezes chora, escondendo as lágrimas nos pêlos e nas dobraduras de seu rosto de canino velho, de Sharpei. Lá esquecido, alegra-se com um resto de comida, com o cheiro do dono e nem o fiscal do condomínio o percebe, se o vir não ligará. O mais longe que vai é quando desce as escadas para pegar o jornal matutino, que lhe servirá de cama no final do dia. Isso aprendeu a fazer desde filhote. Se o entregador se atrasar, fica aguardando no jardim atrás de alguma roseira.
Pela porta aberta reencontra o bípede, agora líder da matilha. Esse sabe fazer coisas interessantes e usa uma língua, que não sua, debaixo do pescoço, chamada gravata. Usa uns olhos postiços para ver, tem um olfato péssimo, que se não latir nem percebe o cheiro da chuva que se aproxima, para fechar as janelas. Um gato branco da mulher do dono também perambula por ali com uma coleira vermelha e seu nome gravado. Quando ela não está, o gato além de importunar Dafo, faz lembrar ao dono o asseio feminino e os hábitos culturais da estética, que por vezes, destarte a pressa e seus modos, são práticos, mas bárbaros. Sua letra é um risco mal delineado, que, ao reler, se socorre com os filhos para elucidá-lo.
Dapho aprendeu a repartir o espaço com o felino, porque também já foi “menino”. O gato some, reaparece à noite. Volta arranhado ou nervoso, ele não se apavora. Tudo passa. Os seus filhotes por certo errarão pelo mundo das vizinhanças, ou serão castrados por alguma madame solitária. O pior é quando o bichano lhe olha nos olhos, não o teme, não o ataca, mas é como se tramasse um ardil; Dapho sempre leva as culpas da armação do felino. O dono não consegue defendê-lo diante da esposa, por mais ilustre defensor que seja. A sua fama de bonachão, vagabundo e preguiçoso ficou na casa e até na consciência do dono mesmo.
O canil é o seu destino, decidiram numa junta de família, em última instância. Guarde-se uma foto no computador para as crianças. Percebeu Dapho a movimentação dentro da casa e que queriam dar-lhe um destino cruel, com piedade humana. O gato ficaria só, mas também a casa, porque gato não pára em casa, pensou Dapho, que nunca buscou o seu espaço além do jardim. Far-se-ia picar por alguma víbora como Cleópatra e escaparia à “piedade” do seu melhor amigo.
Assim foi-se Dapho. Peço somente ao dono que pegue o jornal no jardim para ler, ao menos neste sábado, esta crônica. Lembranças do seu cachorro. Dapho.
(Obs. Publicado na Tribuna de Piracicaba, sábado de 07/03/09, crônica criada a partir da descrição e discrição de um cachorro de um amigo)

2 comentários:

  1. Camilo, eu pegaria fielmente o jornal no jardim, todos os sábados, pelo simples porém imensurável prazer de ler suas crônicas... abraço carinhoso "prôceis".

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  2. Oi Camilo, esse sharpei é uma graça , meu Deus pega os jornais todos os dias p o dono hein. Puxa vida , e que vontade de passar uns dias nestes chalés maravilhosos. Grande abraço meu amigo.Mônica

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