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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sábado, 23 de julho de 2011

As crianças veem coisas que adulto está impedido pelo vício da cultura, aconteceu na minha família algo semelhante que transformei em crônica/conto. Vive-se com um terno a vida toda e quando o velhinho morre enterra-se com terno novo. Espero que gostem e comentem esse singelo texto. Ultimamente, com tantos afazeres, só consigo fazer os singelos mesmo e divido com vocês.

O terno do nono

Um céu cinzento de uma manhã fria de uns pingos cadentes aleatórios de entremeio, confuso o próprio tempo, e a menina:
- Mãe, porque defuntos usam terno?
- Para entrar no céu, filha. É isso.
- Mas disse que ia virar anjinho de novo, ele tem asas, mãe, tem?
- Fica quietinha, filha, depois a mamãe conversa com você.
O nono tinha mesmo um terno surrado e velho, um sorriso largo ao ver a neta e alguns passos cadentes pelo quintal com seu terço antigo. Mais vivo e mais caro que a herança eram as lembranças vívidas de um tempo em que o tempo parara no olhar de criança. Para elas o tempo não existe. O terno puído, por vezes dependurado em algum canto, indicava a presença do nono. O seu noninho. Agora não, o velho estava com um terno novo de missa. Por quê? Ora, o pai se rebelou contra a situação, disse que não ia deixar o nono ser enterrado com terno velho, esgarçado, com o qual vivia às voltas pela casa, não. Foi à loja e comprou o melhor terno, um que nunca o morto se viu no espelho e o vestiram para o velório. Afinal, era o primeiro morto da família, nem os anjos esperavam essa chegada fora de hora, pensou a menina. Ia rezar para os seus anjinhos o receberem bem, lá no céu o nono era um desconhecido e com aquele jeito de falar ia se desentender com São Pedro, que o padre disse que não era fácil, de gênio forte como o nono e... tinha algumas chaves.
Com o adiantado da hora o céu limpo estrelou, as velas bruxuleavam e as pessoas iam se acostumando no vozerio alheio à cena, aliás, o nono ia saindo de cena. A menina não alcançava o caixão, mas tinha a impressão de que o nono ia fugir por baixo das flores e ir para o céu sozinho. É isso mesmo, minha filha – confirmou a mãe. Os mortos pregam peças nos vivos, isso pregam. O rosto do nono era sereno e de um sorriso para a netinha, uma brincadeira de esconde-esconde, não o tocou porque já sabia que se fora agora, deixou mesmo um boneco que pensam que é ele. Se tocasse com o dedo se desfaria como farinha, o nono se fora há muito. Somente a criança percebeu e o adulto não aceitou. Deus o levou para o mundo dos dormentes, nada mais falso que um defunto de terno no cadafalso. Deixa-se o útero chorando – a vida é purgada para a realização de todas as dimensões humanas. A felicidade não é dada em doses de prazer hedonistas, mas em pitadas de dor...
- Esquisito esse mundo de gente grande! Não é menina?

Publicado pel@ Tribuna Piracicabana em 16/07/2011, com 29 leituras no site até 23/07/11
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www.camilotextos.blogspot.com - blog de crítica literária
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3 comentários:

  1. Uau!!! Exatamente por ser tão singelo é que seu texto é lindo..Gostei de verdade.Parabéns!!!

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  2. É verdade amigo, muitas vezes passamos pela vida de qualquer maneira, em ternos surrados, mas percebo em seu texto que o importante é a essência, não a superficie. parabéns.

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  3. Na minha infância, Camilo, um tio costumava fazer piada sobre esse negócio de se vestir bem, logo que defunto. Dizia ele que se se vai a algum lugar pela primeira vez, então se deve ir mesmo é com a melhor roupa, um paletó que seja.

    Felicidades, amigo!

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