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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sábado, 23 de março de 2013

Caro(a)s amigo(a)s, vivo uma fase de tristeza ou de mutação vital, meu pai vai aos poucos numa cama há dois anos e meio e emagrece e vejo lentamente sua partida. Talvez isso me traga estes textos mais religiosos. Desculpem os que o acharem piegas.
O blogueiro
Um sapato e um tamanco
Diz-se que os discipulos achegaram a Jesus, sozinho, para aprenderem a rezar e ele ensinou a oração mais repetida em todo o ocidente. Desde então alguns trataram de formular e aprender orações “fortes”, como fórmulas mágicas para os mais variados propósitos e fazer promessas e dar pulinhos ao São Longuinho.
Na verdade a oração do católico era o rosário, mas depois dividiram em três partes, o terço, e o homem da gleba também tinha um terço da lavoura que plantara, então misturaram tudo e rezavam.
Dizem que o italiano é supersticioso, pecador inveterado e religioso; meu nonô era um misseiro e orante do terço, mas contava uma história ou lenda, sempre e com a entonação do era uma vez, repetindo-a por muitas. Meu avô contava de uma menina que chegava numa igreja, manca de uma perna, subia o morro e ia à missa (as igrejas era construídas num monte e o povo minguava sob um bispo ou padre), com atraso, porém, ao chegar, a missa ganhava vida e até milagres operavam-se. O padre diante da eficácia quis conhecer a oração dela. Aliás, abro um parêntesis, existe oração e rezação, rezação são aquelas falas empostadas para os outros, para criar efeitos, oração não é bem isso.  Oração? - disse a menina – eu não sei rezar, seu padre! O religioso insistiu para saber o que fazia na missa enquanto ele desfiava seu latim brutal, talvez incompreensível até para Deus. A menina, frágil, tirou os calçados e mostrou ao padre dizendo “não sei não, mas venho assim, ó, com um tamanco e um sapato”. E segurando os calçados errados na mão, saiu andando certo e sumiu na porta da igreja vazia. O padre passou a repetir a oração ininteligível aos homens.
Com certeza, como eu e você leitor (a), ele até hoje não entendeu o que significa. Oração é coisa de momento, da graça ou do que queiram chamar, mas inda lembro dos gestos de meu nonô rezando seu terço sem graça, cansativo para mim, cinquenta aves-marias, alguns padre-nossos e Glória no meio das dezenas. Nessa hora ele não falava nada, só olhava de soslaio e continuava firme, passando as contas de uma mão à outra, a miúdo, solene, eu ia vendo qual parte do terço estava mais comprido, se era o de baixo estava terminando essas orações dele como um depósito bancário na eternidade, aguardando o saque na hora da “nossa morte, amém”. Já, na igreja, o terço era um desafio ao seu santo onomástico, Antonio; ajoelhado diante de algum altar lateral segurava o terço numa das mãos esticada e contava as orações como a matar pulgas.
O terço de meus pais era rezado na cama, antes de dormir e um puxava o outro, quando a gente criança rezava junto a mãe tinha de cutucar e dizia agora é a sua vez, meu pai forçava a última sílaba como a dizer “vamos”. Na época que eles cumpriam essas obrigações eu dormia sempre antes ou ria dos sons repetidos de gente grande a alguém invisivel. Verdade que, como hoje, acordei e percebi que essas orações ainda estão presentes fui ao teclado escrever a alguém invisível e, com alguma pretensão, acho que nasci depois de algum terço deles e de um dia de muito trabalho, com este ar de religioso e cansado. Af-maria...

Um comentário:

  1. Abençoado és pelo terço em família... Fragmentos que hoje lhe trazem a força necessária para prosseguir.
    Abraços, Célia.

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