
Águas de março (Publicado em 28/03/08)
Semana santa e os céus ainda mandavam água. Como todo ano a paixão de Cristo é apresentada na cidade, com figurantes e atores apaixonados pela arte do teatro. A peça conta com o trabalho de formiga e do gênio do diretor, no antigo engenho entre as ruínas dos galpões e fornos, onde monta um cenário ao ar livre. Em várias cenas, junto à manjedoura, como aguadeiro nas Bodas de Cana, à Hitchicok, o diretor, ator, faz emergir as cenas do drama, da trama presente no inconsciente coletivo da Cristandade. Minha esposa, muito sensível, chora nas cenas mais
dramáticas. E eu sempre atento aos detalhes, vejo as cenas se passarem aqui e acolá – olha lá, olha lá, o personagem histórico e contemporâneo! Jesus pode ser o seu próprio vizinho!
Meus dois pais, maiores de setenta e oitenta, católicos, assistiam fiéis, pela primeira vez, aquelas cenas tão tocantes e de tão grande simbologia. A doçura do burrinho carregando Maria e o menino Jesus em fuga, contrastando com os cavalos a galope na matança dos inocentes. Que força dramática! Aqueles soldados romanos representando o império da impiedade com a força dos cavalos em assalto sobre a multidão desarmada, atentando contra a vida humana. A tropa de choque enfileirada para impedir e manter o poder de Herodes que discute com o rebelde João Batista.
Mas quando João profere a fala de que ele batizará com água. De fato, a chuva aumenta de tal forma que os expectadores descem da arquibancada já úmidos. Interrompe-se o espetáculo ao ar
livre. O povo quer descer a arquibancada e sair. Olho para meus pais, sentados, protegidos com uma sombrinha fina. Minha mãe que tem medo de chuva, começa com as jaculatórias como “Jesus, Maria, José!” e “Nossa Senhora!” a cada relâmpago. Chego perto e tento protegê-los de algum acidente, pela possível pressa dos transeuntes umedecidos. Minha mãe vira-se para mim e diz que “São Pedro acabou com a paixão de Cristo”. Meu pai, parkinsoniano, treme mais quando lhe afeta alguma emoção ou preocupação e tremia muito. Olhei para o cenário e para os atores que se misturavam ao povo. Devaneei-me. Avancei a arena. Montei um cavalo, derrubando um soldado romano, fui até Pilatos e lhe tomei a capa, voltei a galope e cobri meu pai trêmulo. Jesus Cristo protestou e eu lhe tomei também a túnica para cobrir minha mãe. Enquanto isso minha esposa com uma sombrinha cobria o burrinho da cena com José e Maria. Ela adora a burros! O
burro começou a segui-la pela arena molhada até o galpão coberto – era um animal fácil de contracenar, manso, dócil, só faltava falar, pois não conseguia decorar o texto. Naquele alvoroço de chuva forte e ao ver meu pai tremendo – achava que era de frio - o diabo se achegou, tentou carregar meu pai, dizendo: “calma, calma, eu levo ele, ele precisa se aquecer!”. Minha mãe quis impedir, mas Jesus a convenceu que era melhor o diabo levar meu pai mesmo, ele era mais
forte. O levou na frente e ela o seguiu. O seguiria até ao inferno. A chuva forte não parava.
Era emocionante. Intrometi-me entre os atores e cenários que tanto mexeram comigo. Nunca tivera coragem de ser ator, mas agora o cenário estava ali, sem diretor. Vi Jesus cara a cara! Quando cheguei perto e a chuva aumentou os soldados correram. Covardes! Levei Jesus a salvo para um lugar seguro onde não o encontrariam. Deixei-o protegido da chuva no palácio de Herodes, junto com Judas Escariotes. Voltei para minha esposa e meus pais já aquecidos num galpão ao lado de Pôncio Pilatos. O tribuno discorria sobre o discurso não feito, e dizia aos presentes, que diante daquela chuva toda “lavava as mãos”; mas se quisessem, poderiam crucificar Jesus no dia seguinte. Ao sair com meus velhinhos e esposa encontrei com o bom ladrão, um fiscal do imposto de renda, que me deu carona até o carro. Montei no coche, puxei as rédeas e fomos embora. Atchin!
Se rio, também homenageio. No barulho da chuva e trovões de diálogos não-verbais e inaudíveis, os soldados e reis, solidários, desfizeram-se de seus mantos e túnicas para proteger meu pai, que apesar de bem agasalhado ainda tremia. Era o mal de parkinson. Quem sabe se a paixão de Cristo
tivesse ocorrido no Brasil, não seria diferente!? Não faltou agasalho, cuidados e o pão de Cristo para aquecer o coração de um velho desconhecido. “Tudo que fizerdes ao menor dos meus, a mim o fareis”, disse-o Jesus. Eu sou grato.
Recado: Dispomos de exemplares do livro recém lançado As ciladas do Semana santa e os céus ainda mandavam água. Como todo ano a paixão de Cristo é apresentada na cidade, com figurantes e atores apaixonados pela arte do teatro. A peça conta com o trabalho de formiga e do gênio do diretor, no antigo engenho entre as ruínas dos galpões e fornos, onde monta um cenário ao ar livre. Em várias cenas, junto à manjedoura, como aguadeiro nas Bodas de Cana, à Hitchicok, o diretor, ator, faz emergir as cenas do drama, da trama presente no inconsciente coletivo da Cristandade. Minha esposa, muito sensível, chora nas cenas mais
dramáticas. E eu sempre atento aos detalhes, vejo as cenas se passarem aqui e acolá – olha lá, olha lá, o personagem histórico e contemporâneo! Jesus pode ser o seu próprio vizinho!
Meus dois pais, maiores de setenta e oitenta, católicos, assistiam fiéis, pela primeira vez, aquelas cenas tão tocantes e de tão grande simbologia. A doçura do burrinho carregando Maria e o menino Jesus em fuga, contrastando com os cavalos a galope na matança dos inocentes. Que força dramática! Aqueles soldados romanos representando o império da impiedade com a força dos cavalos em assalto sobre a multidão desarmada, atentando contra a vida humana. A tropa de choque enfileirada para impedir e manter o poder de Herodes que discute com o rebelde João Batista.
Mas quando João profere a fala de que ele batizará com água. De fato, a chuva aumenta de tal forma que os expectadores descem da arquibancada já úmidos. Interrompe-se o espetáculo ao ar
livre. O povo quer descer a arquibancada e sair. Olho para meus pais, sentados, protegidos com uma sombrinha fina. Minha mãe que tem medo de chuva, começa com as jaculatórias como “Jesus, Maria, José!” e “Nossa Senhora!” a cada relâmpago. Chego perto e tento protegê-los de algum acidente, pela possível pressa dos transeuntes umedecidos. Minha mãe vira-se para mim e diz que “São Pedro acabou com a paixão de Cristo”. Meu pai, parkinsoniano, treme mais quando lhe afeta alguma emoção ou preocupação e tremia muito. Olhei para o cenário e para os atores que se misturavam ao povo. Devaneei-me. Avancei a arena. Montei um cavalo, derrubando um soldado romano, fui até Pilatos e lhe tomei a capa, voltei a galope e cobri meu pai trêmulo. Jesus Cristo protestou e eu lhe tomei também a túnica para cobrir minha mãe. Enquanto isso minha esposa com uma sombrinha cobria o burrinho da cena com José e Maria. Ela adora a burros! O
burro começou a segui-la pela arena molhada até o galpão coberto – era um animal fácil de contracenar, manso, dócil, só faltava falar, pois não conseguia decorar o texto. Naquele alvoroço de chuva forte e ao ver meu pai tremendo – achava que era de frio - o diabo se achegou, tentou carregar meu pai, dizendo: “calma, calma, eu levo ele, ele precisa se aquecer!”. Minha mãe quis impedir, mas Jesus a convenceu que era melhor o diabo levar meu pai mesmo, ele era mais
forte. O levou na frente e ela o seguiu. O seguiria até ao inferno. A chuva forte não parava.
Era emocionante. Intrometi-me entre os atores e cenários que tanto mexeram comigo. Nunca tivera coragem de ser ator, mas agora o cenário estava ali, sem diretor. Vi Jesus cara a cara! Quando cheguei perto e a chuva aumentou os soldados correram. Covardes! Levei Jesus a salvo para um lugar seguro onde não o encontrariam. Deixei-o protegido da chuva no palácio de Herodes, junto com Judas Escariotes. Voltei para minha esposa e meus pais já aquecidos num galpão ao lado de Pôncio Pilatos. O tribuno discorria sobre o discurso não feito, e dizia aos presentes, que diante daquela chuva toda “lavava as mãos”; mas se quisessem, poderiam crucificar Jesus no dia seguinte. Ao sair com meus velhinhos e esposa encontrei com o bom ladrão, um fiscal do imposto de renda, que me deu carona até o carro. Montei no coche, puxei as rédeas e fomos embora. Atchin!
Se rio, também homenageio. No barulho da chuva e trovões de diálogos não-verbais e inaudíveis, os soldados e reis, solidários, desfizeram-se de seus mantos e túnicas para proteger meu pai, que apesar de bem agasalhado ainda tremia. Era o mal de parkinson. Quem sabe se a paixão de Cristo
tivesse ocorrido no Brasil, não seria diferente!? Não faltou agasalho, cuidados e o pão de Cristo para aquecer o coração de um velho desconhecido. “Tudo que fizerdes ao menor dos meus, a mim o fareis”, disse-o Jesus. Eu sou grato.
Seria cômico... não fora a realidade trágica ultrajante dos fatos! Feliz Páscoa, Camilo!
ResponderExcluirAbraço, Célia.
Obrigado, Célia e feliz páscoa com um grande abraço.
ExcluirCamilo, adorei esse texto. Fez muito bem em postar no blog. Abraços pra você e sua família!
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