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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sábado, 15 de outubro de 2011


Vagido - o caso de Felipa
Um lugar ermo de sol a pino, cheio de dejetos desprezados pelos humanos, o cheiro denunciava o lixão. Um cenário mal feito, rude, amontoado de coisas, sem pontos de perspectiva, uma desolação de nada de se ver, além de alguns urubus e gatos, que esfomeados perambulavam. Focos de fumaças de alguns montes de dejetos, de combustível, óleo ou produto químico de cheiro forte que queimavam o ar, como assopro do diabo. Era um sheol, um silêncio dos infernos. Um calar de omissão, de absenteísmo, de desilusão, de tormento introjetado. Este som do vácuo, das depressões. Um som do absurdo no ar já tépido, onde nunca encontrará eco ou ouvido que o ouça, a não serem os ouvidos absolutos. Nada por se aproveitar, lugar de desova de inutilidades, próximas a desintegração, de mofo, nem recicláveis eram. Ver aquela tristeza era um tempo perdido, uma coisa chata, inda mais naquele sol de se encontrar gente, sim gente, gente ao sol, escorrendo o suor como cera de uma vela quente, que ia se acabando. Eram catadores. E no meio ermo, abaixo dos escombros quietos um vagido. Era como o primeiro assopro de Felipa. Uma menina, braços gordos de neném batiam nos plásticos velhos, lugar escuso onde a depositaram por descuido. Deus que protejam os sonhos dos descuidados, por que de lá um cãozinho puxou a criança para fora, enquanto o entulho cedeu. No caminho ficou o bebê lambido carinhosamente pelo animal. Conteve o vagido de fome e via o ente peludo e materno sobre si, a lua veio sobre o lixão, como a se assentar sobre um oásis. Felipa ainda não sabia quem era e o quadrúpede a protegia. Dormiu ali com ela na noite. Por fim, um homem em roupas rasgadas, como um tordilho humano, a viu. Era uma criança. Retirou o filhote de gente das garras do cão, assustado, com medo de que a fizesse mal. O cão já ia regurgitar alimento de sua boca já por adotar como sua cria. Mas uns chutes do dono o fez seguir o enredo de longe. O fato de repercussão notória ganhou as primeiras páginas dos matutinos. Um assunto que rodou de boca a boca. Da rodovia as pessoas olhavam de seus carros e Vans o local do acontecido, como a sentirem as emanações daqueles momentos, como um conto bíblico. Era aquele lugar! Ainda teria algum vestígio da menina lá?! Abaixo, no local, era um lugar de esquecimento mesmo, viam-se alguns esparsos catadores, alguns debaixo de seus chapéus de largas abas e outros debaixo da sombra do desespero, pegando tudo que achavam e, por vezes, levando a boca alguma sobra. Os “irmãos” de Felipa também perambulavam de pés descalços por aquele chão de um mosaico triste e pontiagudo e de vitrais góticos e quebradiços, abandonados, que entra no coração dos passantes desavisados como ogivas. Foi-se o vagido nos braços de alguém. Ganhou um lar e um nome a criança. Cresceu. Quando está triste não lança os brinquedos para o lixo, porque sabe que o seu cachorro vai buscar e trazer o presente que não quer. Ficou moça. Aquele cão que aparecera ao acaso seria o mesmo que a salvou em criança? Não o sabe ao certo, mas é ele que a tira dos escombros do dia a dia, dando seus latidinhos e choros de saudade, pulando nela e lambendo-lhe as mãos. Não vou descrevê-la, preservarei sua identidade, mas Felipa vai pôr o lixo na rua hoje e está grávida.

3 comentários:

  1. Difícil foi ler o seu conto até ao final pela realidade contundente do mesmo! Dói em nossos corações saber de tantas Felipas nesse mundo desabrigado de amor ao próximo. Ainda que pululem religiosos pregando tal amor. Inconcebível! E, Felipa está grávida! Porá o lixo na rua! Que santificada a sua metáfora, Camilo! Reverencio-me a tamanha humanidade! Abraço, Célia.

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  2. Tenos tudo aquilo de que necessitamos para viver...ou muito mais!
    É hora de acordarmos dessa letargia sem
    fim...desse egocentrismo desmedido!
    Temos feito pouco... ou quae nada.

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  3. Impressionante esse texto, Camilo! Parabéns!

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