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O blog atém-se às questões humanas. Dispensa extremismos ou patrulhas. Que brilhe a sua luz. Bem-vindo e bem-vinda!

sábado, 20 de agosto de 2011

Obrigações

Sobre o Sarau Literário de Piracicaba-SP

No sarau conduzido pela Ana Marly Jacobino uma pessoa se manifestou sobre a revolução pela literatura, de um sentimento genuíno de um novo Brasil, melhor, com as pessoas lendo e escrevendo. Creio que a comunidade do Amor Fraterno esteja no caminho certo e lá muitos escritores, inclusive mirins, a cujos o Sarau abriu e abre espaço e pudemos aprender e ver muitas coisas. Lá o escrever está dentro da vocação do termo, as pessoas falam de suas experiências e sonhos, de seus conhecimentos cotidianos de vida, amor e gentileza. A literatura não se faz de cima para baixo, ela tem de descer ao chão e ser criada como um adão e eva; não se compreende literatura aos usuários de chavões linguísticos e expressões cunhadas pela mídia, a verdadeira literatura tem expressões próprias e não se serve a patrulha de nenhum tipo, forma antes pessoas que "escritores". Passa-se na mídia por literatura como obra de personalidades e campeões em vendagem, literatura não é isso, ao menos para mim. Sobre texto abaixo:


Amigos, pensando no que postar aqui, achei este texto de quando meu pai ainda podia se expressar e andar. Não quero que ele seja uma perda para mim, porque quando vou escrever e "conhecer" alguma coisa, sinto algo da sua consciência em minhas descobertas de expressão literária, embora ele não seja literato ou erudito, tem o terceiro ano do primário somente. Não sou adepto de nenhum esoterismo, mas sinto perto dele uma energia forte, às vezes boa e em outras vezes ruim, própria de seu sofrimento; mas sei que todas as energias que compõem esse universo divino estão ali na sua pessoa trespassada pelo parkinson. Se Deus nos deu a energia (aos que creem), dê-nos também a sabedoria de como usá-la, no tempo que flui pelos dedos. Amém.

Obrigações
A grade do portão os separa. O velho com os olhos miúdos na porta entreaberta jogou a chave, que ficou há um metro das mãos do visitante. Um abismo entre o jovem e o velho, unidos por um sorriso e pelo acaso, a chave não chegou às mãos do jovem. A idade limitava as manobras com o corpo, as forças estavam deixando-o.
Por fim, o jovem pulou o muro. Por um momento de desmemoria o velho temeu por um assalto. Aquele desconhecido, ladrão de seus genes, invadia seu lar. Vieram-lhe os tremores pelo medo, depois pela alegria: era o filho aquele moço, afinal.
Beijou a face de barba por fazer. Os fios brancos no rosto enrugados lhe davam uma imagem horrenda. As orelhas crescidas e a idade avançada pela calva e a boca sem dentes, não afrouxavam o amor filial.
Sem espelho, pôs-se a barbear ao pai, que lhe devotava carinho. Daqui e dali o aparelho roncava feito um besouro a escanhoar um ou outro pêlo sem-vergonha. Um olhar de esguelha e uma nova etapa nas rugas, nas dobras do pescoço. “Tá parecendo pescoço de frango”, disse o filho. O velho riu. Ria sempre de suas misérias e dos jargões jocosos do filho – miséria tem quem não as divide, nem com um sorriso.
À noite, de um inverno, enquanto o enfermeiro-filho entrava pela porta escusa, ele acabava de tomar a sopa. Conversa de olhares à esposa, assunto de muitos anos, ainda não resolvido. Cada vez que iam concluir, chega um filho. “Quem tai?”. A visita sorrateira toma assento à mesa e faz parte da família, é mesmo o filho da noite. “Tomou os remédios hoje? Líquidos?”. As reclamações da mãe e a atenção dos olhos pequenos do pai, acostumado a não se incomodar mais com as contendas habituais.
Enquanto esfregava as mãos gélidas da noite fria, ouve a mãe, reconhece as reclamações de cor e fita o rosto do pai, no qual vê muito mais que um senil enfermo. A mãe alcovitava, também tinha dores, canseira e necessitava de apoio – era saudosa, nostálgica, fervorosa em sua religião familiar católica. No entanto, ela fazia certas concessões em seus valores como à amizade com evangélicos vizinhos, cuja ajuda sempre recorria e tolera a vida de amásio dos filhos não casados.
Ao velho os pijamas. Não gostava desse conjunto de bolinhas azuis, “que mais parece palhaço de circo”. O filho puxa-lhe a calça pelos pés, ele senta-se na cama. Faz-lhe cócegas na planta dos pés – brinca – “dá o pé, Mané!” – ele ri e a mãe o repreende tamanha intimidade entre pai e filho, mas aquiesce amiúde. Põe, por fim, o pijama e lhe dá um tapa na bunda, fraco, diferente ao que recebia na infância. A parte de cima do pijama é um brincar de esconde-esconde até achar o buraco do pescoço. O pai consegue, com um puxão do filho, saltar a cabeça fora como um jabuti velho, com a cabeleira branca revolta está rindo.
A mãe assiste e pode rir dos “palhaços” da família, sem escárnio e com certo alívio. Também pode esquecer por um instante, de uma eternidade suspensa, valores vitorianos que tanto faz sofrer as gentes. A vida não é obrigação, é arte de um clown sério.

2 comentários:

  1. Fabuloso, mergulhado no real, uma experiência íntima de pai e filho, apesar das dificuldades do caminho da vida. Parabéns primo,
    abraços
    Leandro

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  2. Parabéns pelo texto, Camilo! É muito bonito, afetuoso e sincero. Chega a comover. Obrigada por visitar e comentar minha crônica no Diário do Engenho! Foi muita gentileza sua. Abraços pra você e pra Luzia!

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