Uma homenagem ao meu avô materno. Carlos.
Jardinagem
O velho Carlos ali plantava, enxertava, ajeitava os canteiros, e convivia com todos os seres em miniatura do jardim. Estava encurvado pela idade o homem rude e cheirando a suor, a perfume de plantas e à terra. Conhecia os beija-flores quase que pelo nome e pelo vôo e os via por segundos, batendo suas asas invisíveis, inesquecíveis. Os pássaros em confiança voavam rasantes ao velho de cenho branco que se entretinha em meio a tanto verde e cantos de algazarra daquele passaredo. Afoitos surgiam no ar com danças mirabolantes, outros paravam nos galhos das árvores, cantavam nas moitas e até ciscavam no jardim. Seus pensamentos eram limpos, sua cruz era leve e a natureza amiga. Ao chegar a casa à noite, entrava pelo quintal, tirava os sapatos de terra e antes de entrar na civilização, sentava-se, parava a pensar e agradecer ante o sol que se punha. Lá na cozinha, Irene chamava-o, que subisse a escada e saísse de sua soleira amiga, o jantar estava pronto, que viesse comer. Alguns netos entretinham o olhar na cena, vinha com uma rosa e sem jeito oferecia a Irene, tímido. Velho bobo não precisava se preocupar, dizia, mas todos os dias seu vaso de louça estava repleto dos mais variados matizes e perfumes. O sono de Carlos era um canto uníssono com Deus e com a liberdade.
Portava também um velho livro de folhas amareladas pelo tempo, de orações ao Senhor dos Jardins. Orava em pensamento, enquanto trabalhava, pelos jardins e jardineiros do mundo, por todos os jardins e casas, caminhava sobre as dez pedras brancas que ele mesmo colocara e que faziam o responso aos seus pés, em meio à grama. E que todos pudessem ter seu jardim! Amém. Sabia que não iria além do jardim, queria ser uma daquelas árvores, feias e rudes, a gozar da companhia das flores, cascas, poeira, sementes, que a natureza produz em sua vital dinâmica, arrasadora, inexorável e bela. Ao passar pelo jardim é possível ouvir-lhe os passos pelo farfalhar da grama num ruído verde que rompe o tempo, num zap-zap bem manso. Em meio ao jardim há água aos borbotões, o sábio jardineiro plantou uma vegetação de raízes profundas e ávidas de água, enriquecendo o seu solo, túmidas. As rosas perfumadas e lindas, noutro dia são folhas que ele varre amiúde junto aos pés das árvores. Sabia que seu jardim era efêmero como ele e sua glória. Aprendeu a ser humilde e feliz esperando o seu súbito final, a morte.
Foi capinado da terra e caiu como uma árvore, ainda com os ramos estendidos. Seu jardim acolheu o seu corpo, agonizante. Passou de um jardim a outro, o Senhor dos jardins acolheu o seu servo. Fizeram-se presentes todas as rosas, borboletas e uma grande revoada de pássaros de todas as espécies e cores, em seu funeral. No caixão de cedro, como que dormia, espraiava um sorriso em sua face, ainda rosada. Não quis honra, nenhuma pompa, apenas a mortalha, não quis nada, nada levou, foi inteiro para o céu, para o jardim que a muito estava preparado, antes da fundação do Universo. Morreu para este mundo, sem maculá-lo.
E lá, no jardim inominável debaixo do céu, das raízes enlameadas e túrgidas, ainda transparece a vida dadivosa das plantas. Nos fundos de uma casa velha e ruinosa, a qual descascam-se as paredes e os cômodos. Sim, é a umidade do jardim dizem os engenheiros. É preciso derrubar o jardim, cortar a cabeça do Capitão e Dálias ao fogo, caçar os Antúrios, assombrar os Girassóis, corrigir essa tal Maria-sem-vergonha, nem que sejam as Onze-Horas, que se arranquem as Avencas e acabem com essa encrenca, tire-se o Chapéu-de-Couro, regurgite-se o Boldo e que se feche a Boca-de-Leão, nem que seja Flor de São José, nem que a Dona Margarida abra essa ferida, nem que se jogue a Hortênsia, nem que o Cravo apazigúe com a Rosa, nem que renasça os Gerânios, que se derrube o arvoredo e se espante o passaredo, chega de Palmas.
Assim, indefeso, o jardim foi pisado, arrancado e calcado com cimento. Impiedosamente as flores foram jogadas dentro de um saco para o caminhão barulhento do lixo. Puseram um piso belo, importado com desenhos de plantas, muito bonito e limpo, sem necessidade de nenhum jardineiro.
O povo que vive do lixão retirou as plantas do meio dos cacos de vidros, latas, pilhas usadas, restos de comidas e outros detritos “desumanos” – de coleta não seletiva - e plantaram numa área invadida por pássaros, beija-flores, borboletas, gafanhotos, grilos e todos os rejeitados pelo centro urbano. Um novo jardim? Então encontraram também o livro de folhas amareladas, onde se lê nas letras rudes e piedosas de um recém analfabeto: Eis que o Senhor fará novas todas as coisas. Carlos.
O velho Carlos ali plantava, enxertava, ajeitava os canteiros, e convivia com todos os seres em miniatura do jardim. Estava encurvado pela idade o homem rude e cheirando a suor, a perfume de plantas e à terra. Conhecia os beija-flores quase que pelo nome e pelo vôo e os via por segundos, batendo suas asas invisíveis, inesquecíveis. Os pássaros em confiança voavam rasantes ao velho de cenho branco que se entretinha em meio a tanto verde e cantos de algazarra daquele passaredo. Afoitos surgiam no ar com danças mirabolantes, outros paravam nos galhos das árvores, cantavam nas moitas e até ciscavam no jardim. Seus pensamentos eram limpos, sua cruz era leve e a natureza amiga. Ao chegar a casa à noite, entrava pelo quintal, tirava os sapatos de terra e antes de entrar na civilização, sentava-se, parava a pensar e agradecer ante o sol que se punha. Lá na cozinha, Irene chamava-o, que subisse a escada e saísse de sua soleira amiga, o jantar estava pronto, que viesse comer. Alguns netos entretinham o olhar na cena, vinha com uma rosa e sem jeito oferecia a Irene, tímido. Velho bobo não precisava se preocupar, dizia, mas todos os dias seu vaso de louça estava repleto dos mais variados matizes e perfumes. O sono de Carlos era um canto uníssono com Deus e com a liberdade.
Portava também um velho livro de folhas amareladas pelo tempo, de orações ao Senhor dos Jardins. Orava em pensamento, enquanto trabalhava, pelos jardins e jardineiros do mundo, por todos os jardins e casas, caminhava sobre as dez pedras brancas que ele mesmo colocara e que faziam o responso aos seus pés, em meio à grama. E que todos pudessem ter seu jardim! Amém. Sabia que não iria além do jardim, queria ser uma daquelas árvores, feias e rudes, a gozar da companhia das flores, cascas, poeira, sementes, que a natureza produz em sua vital dinâmica, arrasadora, inexorável e bela. Ao passar pelo jardim é possível ouvir-lhe os passos pelo farfalhar da grama num ruído verde que rompe o tempo, num zap-zap bem manso. Em meio ao jardim há água aos borbotões, o sábio jardineiro plantou uma vegetação de raízes profundas e ávidas de água, enriquecendo o seu solo, túmidas. As rosas perfumadas e lindas, noutro dia são folhas que ele varre amiúde junto aos pés das árvores. Sabia que seu jardim era efêmero como ele e sua glória. Aprendeu a ser humilde e feliz esperando o seu súbito final, a morte.
Foi capinado da terra e caiu como uma árvore, ainda com os ramos estendidos. Seu jardim acolheu o seu corpo, agonizante. Passou de um jardim a outro, o Senhor dos jardins acolheu o seu servo. Fizeram-se presentes todas as rosas, borboletas e uma grande revoada de pássaros de todas as espécies e cores, em seu funeral. No caixão de cedro, como que dormia, espraiava um sorriso em sua face, ainda rosada. Não quis honra, nenhuma pompa, apenas a mortalha, não quis nada, nada levou, foi inteiro para o céu, para o jardim que a muito estava preparado, antes da fundação do Universo. Morreu para este mundo, sem maculá-lo.
E lá, no jardim inominável debaixo do céu, das raízes enlameadas e túrgidas, ainda transparece a vida dadivosa das plantas. Nos fundos de uma casa velha e ruinosa, a qual descascam-se as paredes e os cômodos. Sim, é a umidade do jardim dizem os engenheiros. É preciso derrubar o jardim, cortar a cabeça do Capitão e Dálias ao fogo, caçar os Antúrios, assombrar os Girassóis, corrigir essa tal Maria-sem-vergonha, nem que sejam as Onze-Horas, que se arranquem as Avencas e acabem com essa encrenca, tire-se o Chapéu-de-Couro, regurgite-se o Boldo e que se feche a Boca-de-Leão, nem que seja Flor de São José, nem que a Dona Margarida abra essa ferida, nem que se jogue a Hortênsia, nem que o Cravo apazigúe com a Rosa, nem que renasça os Gerânios, que se derrube o arvoredo e se espante o passaredo, chega de Palmas.
Assim, indefeso, o jardim foi pisado, arrancado e calcado com cimento. Impiedosamente as flores foram jogadas dentro de um saco para o caminhão barulhento do lixo. Puseram um piso belo, importado com desenhos de plantas, muito bonito e limpo, sem necessidade de nenhum jardineiro.
O povo que vive do lixão retirou as plantas do meio dos cacos de vidros, latas, pilhas usadas, restos de comidas e outros detritos “desumanos” – de coleta não seletiva - e plantaram numa área invadida por pássaros, beija-flores, borboletas, gafanhotos, grilos e todos os rejeitados pelo centro urbano. Um novo jardim? Então encontraram também o livro de folhas amareladas, onde se lê nas letras rudes e piedosas de um recém analfabeto: Eis que o Senhor fará novas todas as coisas. Carlos.
ae camilo, desculpa ae por nao estar lendo seus posts
ResponderExcluirto meio sem paciencia pra ler no PC.
qlq dia eu leio com atenção ae eu posto algo aki
flw
:D
CAMILO,
ResponderExcluirQue homem lindo foi seu avô Carlos, gostava da terra, cultivava as plantas formando seu jardim e ainda oferecia uma flor para a esposa?Lindo de viver. Que estranho a umidade vir do jardim, que raio de engenheiro é esse que destruiu todo o jardim e jogou um cimento no local? Mas no final as plantas foram salvas por pessoas simples, mas conscientes!
Ivana.
Vinicius, um abraço.Um dia as publico e você as deixa na sua cabeceira, em seu suntuoso quarto, por que daí você, já vai ser um homem de sucesso.
ResponderExcluirIvana, um abraço, tinha que escrever sobre ele e mais, tinha de fazê-lo em forma poética, dos muitos Carlos que existem.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirPostagem acima por e-mail: Caro Camilo, essa é uma das suas crônicas que mais me tocou. Falou de plantas e de flores. Fez eu lembrar o tio Carlos, tio Carlito como chamavamos - (aquele dos causos)- que gostava muito de cultivar suas flores e plantas nos pequenos espaços que tinha na sua casa.
ResponderExcluirMe fez lembrar com tristeza, também, o quital belo e formoso da casa que nasci lá no sitio, cheio de mangueira e jatoticabeiras e tantas outras frutas e árvores frondosas que suas raizes serviam de banco para nós trocarmos prosas e reuniamos para a nossa amadora cantoria. Tristeza porque, após a venda do sitio - um médico seu comprador -fez cortar toda aquela maravavilha centenária, com a ESTUPEDA desculpa que esfriava a casa. Coitado do "Dr.".
Abraço Camilo, linda crônica.
Caro Camilo, essa é uma das suas crônicas que mais me tocou. Falou de
ResponderExcluirplantas e de flores. Fez eu lembrar o tio Carlos, tio Carlito como
chamavamos - (aquele dos causos)- que gostava muito de cultivar suas
flores
e plantas nos pequenos espaços que tinha na sua casa.
Me fez lembrar com tristeza, também, o quital belo e formoso da casa que
nasci lá no sitio, cheio de mangueira e jatoticabeiras e tantas outras
frutas e árvores frondosas que suas raizes serviam de banco para nós
trocarmos prosas e reuniamos para a nossa amadora cantoria. Tristeza
porque,
após a venda do sitio - um médico seu comprador -fez cortar toda aquela
maravavilha centenária, com a ESTUPEDA desculpa que esfriava a casa.
Coitado
do "Dr.".
Abraço Camilo, linda crônica.
Camilo, seus textos estão cada vez mais no domínio da poesia... adorei cada metáfora tão bem empregada e confesso: em mais de um trecho submergiu fortemente uma profunda emoção do meu ser imortal a respeito de um avó jardineiro que certamente numa das minhas existências tive. Um texto impecável escrito por um homem adorável. Beijão.
ResponderExcluirO texto não é recente, tem coisa de um ano e meio. Eu vou assim, do lírico ao épico, mas o interior lírico prevalece ou quebra no épico ou dúvidas existenciais. Um abraço e até.
ResponderExcluirPrimo, Lí e senti saudade do nono e da nona, lembro da nona sempre no fogão ou pondo a mesa, o cabelo branquinho sempre preso, a roupa simples, impecável. Acho que é uma das minhas mais antigas lembranças. Voltei ao passado...Beijos...Rô
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